domingo, 15 de janeiro de 2017

Depois que ele chegou, nunca mais pode ir embora

   Quando ele chegou, era a  parte escondida do meu pai. Não havia um jeito mais ameno de ele abrir a porta, quando ele colocou os pés na nossa rua, já sabia que o teto de uma casa desabaria. Acho que ele teve medo, acho mesmo que adiou sua entrada, mas, avassalador, o homem-brisa chegou e matou meu pai de novo. Nem tínhamos nos recuperado da falta que ele fazia e o homem anunciou uma outra morte. Ainda mais brutal, mais intensa. Dor de desconhecimento.
Cada um na casa lidou como pode com a vendaval que se instalou na sala. As cortinas balançaram, os vasos de flor foram ao chão, estalaram pisos, dedos das mãos, alguém ficou muito vermelho e gritou, algumas portas bateram, teve choro e eu fiquei muda. Silenciosa e ausente de cor, de voz, até meu coração acho que parou um pouco de bater; faltou tudo, menos amor. Eu o amei até sob a tempestade que ele trouxe.

  Quando ele veio, eu não era filha única, nunca fui. Nasci muito completa já; pais, irmãos, tios, primos, avós, madrinha e padrinho, tia-avó e tinha até um sabiá que morava na nossa varanda. Mas quando aquele homem alto chegou à minha casa, pela primeira vez eu achei que me faltava alguma coisa e eu só chorei à noite, escondida, porque havia descoberto a minha falta. Não contei a ninguém no dia seguinte, quando eu acordei, no domingo, a casa era triste, todos pareciam de ressaca ou doentes, só eu tentava agir normalmente, mas acho que também não conseguia. Fui à missa sozinha, errei todos os ritos, mas ninguém quis sair de casa, naquela manhã. Depois da ventania, ele voltou outras vezes, a sua chegada foi, aos poucos,  ficando mais suave e eu o esperava sempre no portão.

  Quando ele chegou, fez nascer meu pai de novo. Eu, diferente da minha mãe e dos meus irmãos, não tive o luto da descoberta. Olhava os gestos, os pequenos olhos esverdeados, as pálpebras rasas, o nariz grande, os lábios grossos e sabia que ele e eu saíamos de um mesmo lugar, era uma parte minha que eu não me negaria a conhecer. No início, conversávamos amenidades de elevador, eu só queria escutar a sua voz e quando ele falava, meu pai voltava e eu podia sentir o cheiro dele de novo. Quando ele ia embora, eu corria para ver ele descer, a cabeça inclinada para trás, os passos firmes e apressados e a boca meio aberta, por onde ele respirava - devia ter o mesmo desvio de septo que nós - trazia meu pai e a mim mesma, nos passos largos e pés grandes.

  Eu o amei, mesmo quando, por muitas horas, eu me lembrava que ele era os dias em que meu pai chegava em casa mais tarde, era o futebol das quartas, as horas extras no trabalho, ele era a tristeza no final da noite dos domingos, o nó com o qual meu pai se entalava entre uma colherada e outra, ele era a gola alta de lã, o colarinho abotoado que sufocava meu pai e que ele insistia em usar, por conta da ocasião. Mas ele era também um amor clandestino, uma paixão avassaladora, um brilho nos olhos do meu pai, uma vida se fortalecendo no desejo, rompendo compromissos, se esgueirando pelos becos escuros, pelas palavras que não se fala em casa, mas que na rua soa como liberdade. Ele era o meu pai que eu não conhecia e que eu gostava de saber que um dia existiu e num mesmo tempo que o homem doce, que condenava mentiras e que morou na nossa casa. 

  Ainda gostei mais dele, porque ele trazia nos bolsos da calça jeans, que ele sempre repetia, mais vida, depois de uma morte tão desalentadora. Porque mesmo sob a tempestade,  mesmo depois dos desabamentos sucessivos do nosso teto, ele, insistente, tímido, sempre voltava. Com seus trejeitos e partido do cabelo igual ao dos meus outros irmãos, com histórias, com a mesma cara de nós todos. Num domingo ele veio, almoçou, ajudou a lavar a louça, ensinou matemática para um dos meus irmãos, escutou o disco do Clube da Esquina com outro irmão, da mesma idade que ele, falou sobre política com a minha mãe e, de repente, ele era daqui, igual ao sabiá, as tias, os primos, ele era meu irmão. E foi a tarde mais calorosa do nosso inverno, foi o dia em que ninguém em casa vestiu mais o preto. E não voltou.

  Quando ele sumiu, fiquei de luto o dobro de tempo, por ele e meu pai que morria de novo. Depois fantasiei o quanto pude, um novo irmão desconhecido, quem sabe? Procurava em estranhos na rua, a herança perdida de novo. Outros pares de pálpebras rasas, outros olhos esverdeados, outras mãos e pés grandes, outra possibilidade de completude.
  Foi olhando para ele, me aproximando, conhecendo nele, o que eu desconhecia em meu pai, que eu descobri que estamos sempre incompletos, fragmentados, espalhados em segredos, rejeições, histórias que se passam, enquanto tomamos banho ou assistimos a um filme. Foi depois da tempestade que ele trouxe, que eu descobri que somos muitos, que a vida de todos os dias, de ninguém, conhecemos verdadeiramente e por inteira. Nem o sabiá eu acho que era só nosso, talvez dormisse muitas noites na varanda do vizinho. Que besteira achar que algum pássaro nos pertencia.

  Quando ele chegou, eu vivi a experiência da traição, do segredo, da mentira e da raiva, mas vivi muito mais a plenitude da descoberta, da humanidade que erra, da fatalidade de tentarmos cumprir o que nos pedem e que quase sempre nos fazem esconder ou deixar de viver uma outra verdade. Ele veio pelo sangue, pela curiosidade de uma vida que também pertencia a ele e partiu levando mais sangue e mais vida.
Foram embora, meu pai e meu irmão, e levaram com eles uma história que também era minha. Sempre houve quem desconfiasse do laço, do verdadeiro genitor do rapaz que apareceu num sábado e sumiu num domingo, meses depois, mas era meu irmão, com os mesmos genes ou não. Era uma vida nova, depois dele nunca mais fui a mesma e acho que depois de nós, nem ele nem meu pai também puderem ser.  Não houve rancor nem mesmo perguntas, mas tive saudade. Tenho ainda, aos domingos, se um sabiá canta e eu ouço Clube da Esquina.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 16 de Janeiro de 2017 (eu acho que é isto)

Prezada estenógrafa Amanda Machado

Dito assim desta maneira por que seus contos fluem de uma forma que pensa fala e escreve tudo junto e em sentido corrente, feito um rio a seguir seu curso.

Primeiro, parabéns pela crônica de hoje. Os pais, tanto mistério ali, não é? na gaveta secreta da escrivaninha de peroba, no cofre imenso que guarda o tempo ou na cristaleira trancada há décadas com a louça que a sogra deu para a vovó.

Mas terminou onde preciso começar - hummm, senta que lá vem história. É sobre o Clube da Esquina. Claro, conheci e fiz amigos em Três Pontas e outros torreões das Minas Gerais. Mas quero falar desta musicidade mineira, que é o Clube da Esquina e sua esquina mística da Divinópolis com a Paraisópolis.

Em 2010 experimentei uma cardiopatia inédita em mim - e como reportou o médico, que é também meu amigo - caramba, por que você não teve um infarto, ou algo assim mais banal, mas uma cardiopatia idiopática grave deste tamanho? Rimos muito e ficamos ali esperando o inevitável, que não ocorreu, claro, afinal desconheço psicografia pela internet.

Bem, parei tudo, fiquei um ano em conforto do lar e com a vida de perna para o ar, primeiro a casa ficou um rebuliço e as pessoas aos poucos foram voltando ao seu mundo e eu querendo, desejando andar.

Findo este ano sabático, resolvi viajar com a esposa e as filhas (lindíssimas, por sinal). O objetivo das três era a Vesperata em Diamantina, e o meu, exclusivo era ouvir lá no Beco do Mota o Clube da Esquina, pois nada será como antes da janela lateral do quarto de dormir depois de um encontro com a única certeza que temos. Sentar na escadaria da catedral, caminhar na Vila Biribiri e respirar Minas, ir no Morro do Pilar, na gruta do Salitre e descobrir que Minas resplandece a gente.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 17 de janeiro de 2017 (sim, é isto ao que parece!)

Caro condutor das boas viagens, Paulo

É bom ser corredeira, acho. É bom ser vista assim, no de repente, de repente...e logo, ops...passou! Já foi!

Mas melhor ainda é quando vem e me leva à Diamantina (que beleza é essa Minas de lá!), tudo parece ter passado por ali e ainda permanecido um pouco, muito ainda não acabou por lá. Sim, a melhor descrição é essa sua "Minas resplandece na gente", que lindo isso! E o Clube da Esquina... que canta a Minas de que eu sempre sinto saudades, mesmo que eu não saia daqui.

Mas voltando ao seu começo, sim, os pais são um mistério. Todos somos, em alguma medida, as mães, filhos, companheiros também, mas os pais, parece, ainda têm uma possibilidade maior de obscurantismo, de vida pregressa desconhecida, de filhos que não chegaram a se conhecer.

Uma cardiopatia...espero que tenha se recuperado completamente. Se Diamantina não o fez, ao menos a beleza de lá não o levou.
Abraços, ótima semana