quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Só não vá morar em Miami

   Você pode sim, juro, sair a que horas quiser e se achar por bem não vir, pode se ausentar também; desmarcar vinte minutos antes ou dois dias depois, tanto faz. Pode chegar sem anúncio, se a porta não estiver já aberta é só assoviar e eu vou louca atender. Não precisa falar sobre o seu dia, se não quiser, e se ligar a TV para assistir ao futebol, eu não torço contra.
   Você pode dormir com todas as mulheres do mundo, achá-las bem mais bonitas, atraentes, inteligentes e engraçadas do que eu. Você pode dividir seu uísque favorito com elas, preparar o jantar e lavar a louça, enquanto elas falam coisas interessantes para você ou leem a sua poesia em voz alta. Você pode ouvir, com elas, as canções que ouviu há pouco comigo; pode até ouvir as que eu fiz você, pela primeira vez, ouvir. No dia seguinte, você pode mandar entregar as mesmas flores baratas daquela banca da esquina do seu trabalho e escrever um bilhete no papel arrancado da sua agenda e pode, também, usar a palavra: amor. Eu não me ofendo.

  Pode se oferecer para levar as bolsas dessas mulheres e pendurá-las no seu ombro. Podem parecer um casal, andando de mãos dadas, apontando as vitrines, desfilando pelas galerias da cidade e, felizes, podem rir também, muito, gargalharem se quiserem. E se alguma coisa fizer você se lembrar de mim, durante o passeio, pode me contar depois, sem ressentimentos, juro. Você pode dar o mesmo livro que me deu quando saímos pela terceira vez, o mesmo, e pode ser até no segundo encontro; o romance é bom, não merece uma espera maior que a minha.

  Você pode deixar o cabelo crescer, pode desistir da barba, ganhar ou perder quilos o quanto quiser, que eu nunca fui de medir circunferências afora. Pode vestir camisas polo, todas as cores que quiser, as listradas também, pode usar calças justas e sapatos de bico fino. Se quiser, até as botas, fivelas e chapéus de cowboy, você pode usar, que eu não me envergonho; mesmo que eu não entenda bem o porquê disso agora. Você pode fazer uma tribal na panturrilha, pode tatuar um ideograma japonês ou uma frase em árabe e acreditar no que o tatuador-tradutor diz, sem problemas, que eu acredito também, se quiser. Faça conexões perigosas, frequente associações estranhas, clubes do vinho, de RPG ou maçonaria, se quiser. Pode correr riscos e saltar de paraquedas, frequentar aulas de jiu-jítsu, comer cereais feitos em casa e eu não estranho muito.

  Você pode responder a mensagem sedutora dele, pensar nele enquanto escreve e trabalha, pode beijá-lo e lembrar do beijo durante a noite, o dia, a semana, o mês inteiro. Pode dar-se inteira para ele, passar um final de semana em Teresópolis, pode querer ir para Grécia com ele. Você pode pensar em filhos com ele, sem ele, sem mim, só em filhos. Você pode se afeiçoar ao cachorro dele, pode gostar mais da mãe dele do que da minha, pode se tornar a melhor amiga da irmã dele, que eu fico muito bem obrigado. Você pode dar uma cópia da chave de casa para ele, pode dirigir o carro dele, pode não bater nunca o carro dele, mesmo que o meu já tenha sido, nas suas mãos, perda total. Você pode fazer círculos com as unhas, de leve, na nuca dele, esperá-lo dormir um pouco no seu ombro e só depois acordá-lo, quando o braço já estiver dormente; e eu não me desassossego muito pensando nisso.

  Se quiser, pode ser simpática com o porteiro que nunca me cumprimenta, pode ser íntima da vizinha com quem eu briguei no elevador aquela vez, afinal, a cordialidade e o esquecimento sempre foram duas companhias poderosas da sua sociabilidade. Você  pode voltar embriagada o quanto quiser, gritar na rua, apertar o interfone do apartamento errado e eu vou sempre buscá-la, sonolento, mas vou. Você pode não me pedir para ficar, pode ir embora sem chorar e esquecer de devolver a minha camiseta que eu tinha desde a faculdade. Você pode ir, juro. Pode rolar a maçaneta,bater a porta, chamar o elevador e eu vou ficar parado, desiludido, mas mudo; sem atrapalhar o seu caminho, sem perturbá-la numa resolução difícil.

  Mas por favor, não me traia, prometa. Só me prometa que nunca vai dormir de meias, passar férias na Disney e morar em Miami, por favor. Mesmo depois de passado o amor, se quiser suas coisas eu devolvo cada uma, sem dor, se quiser deixá-las aqui também não queimo, rasgo ou jogo pela janela do apartamento. Mas não se torne alguém com quem eu me assuste num encontro ao acaso, que eu me pergunte como pude  ter convivido, alguém que eu não reconheça, que eu não encontre um traço sequer do desenho que eu fiz. Só, por favor, não se traia e deixe que a propaganda da TV o corrompa, que o seu emprego o capture, que a sua ambição o cegue de tudo aquilo que enxergávamos tão bem juntos. Só, por favor, não se distraia e perca seus minutos, fazendo pose para sair na foto de pessoas que você mal conhece, reclamando do garçom ou dos impostos, enquanto brinda com seu vinho caro.
 
  O resto, por mim, já está perdoado, que eu não sou nenhum modelo de santidade para regular os prazeres alheios. Ninguém é. Mas se quiser só amar a mim, não fico ofendida. Mas não vá pensar em Miami, não é um bom lugar para gente. E me ame que eu aprendi a gostar assim. Depois de tudo, todos e todas, ainda me ame.
  Só, por favor,  não vá morar em Miami. Miami é o lugar mais longe, é aquele que o afasta completamente desse nosso apartamento alugado e dessa vida que parece ordinária, mas que nós escrevemos tão bem. Miami não é a sua ou a minha casa. Juntos ou separados, não vamos a Miami nunca, por favor.




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