domingo, 22 de janeiro de 2017

Se ninguém ouve, por que canta?

  Eu posso andar pelo outro lado da cidade, posso escolher um piso mais regular para as minhas corridas, posso mesmo ir por um caminho arborizado, menos cinza e com bem menos semáforos, até sem nenhum, se eu quisesse. Mas não tenho ido; não quero. Não é porque esse seja mais seguro, não é pelo medo da instabilidade de uma rota desconhecida; é um ritual.
  O prédio verde de esquina me chama e, de repente, é como se eu não pudesse me afastar muito dele. É a minha visita diária ao que não é casa, tampouco lembranças remotas ou desejo de regresso. É uma ida que eu não evito, mesmo que ninguém me receba ou, ao menos, me veja passar pela calçada.

  Então, hoje, pela manhã, eu coloquei o tênis de solado amarelo - nunca achei que usaria amarelo - e repeti os passos. Atravessei dezesseis semáforos, passei por três padarias, duas bancas de jornal, quatro clínicas veterinárias, três academias de ginástica, quatro escolas e duas praças.  O prédio verde não me emociona, particularmente, mas gosto de passar por ele, saber que ainda não trocaram o portão baixo, não mudaram a cor do verde nem consertaram uma das pilastras da garagem, que continua com uma falha no reboco - alguém que estacionou mal ou na pressa de tirar um carro, deixou o tijolo aparente e nunca mais voltou; e, principalmente, ter esse recorte, um pedaço que permanece, mesmo que tudo ao redor tenha mudado tanto. O prédio verde é um resistente, uma ilha psicodélica, rodeada por coberturas de linhas retas, paredes brancas e vidros espelhados.

  Não vivi lá por mais de vinte meses, acho. Mas se passo na calçada e olho para a janela de onde eu buscava ver o céu todas as manhãs, eu me lembro do taco solto entre a porta e o armário embutido que, num dia, cansada de chutá-lo, eu colei folhas de jornal nas suas costas e o encaixei para nunca mais sair - talvez ainda esteja lá. Lembro da cozinha de azulejos brancos e uma bancada comprida de fórmica, que ia até a pia; do banheiro azul, com uma banheira antiga e um espelho do armário, descascado nas pontas e mais, lembro que era apertado, não tinha elevador, os galhos da árvore da rua iam até a minha janela e, por isso, eu encontrava folhas secas, penas de pássaros e, às vezes, até alguma ave perdida na minha cama. Lembro de chegar de madrugada, subir as escadas muito escuras e de degraus apertados, que eu não tinha medo e que, às vezes, eu abria a porta e já tinha café recém feito à mesa. Mas nenhuma imagem, nunca foi tão presente, quanto uma voz. Um canto que saía de uma das portas do prédio e escorregava pelos corredores.

  Era um canto suave, trechos de músicas folclóricas, salmos e partes de músicas clássicas, um pouco abafado pelos tijolos e portas. Era uma voz baixa, que eu só descobri semanas depois da minha chegada no prédio, começava de manhã, bem cedo, antes das seis e nunca passava das oito da noite; não durava todo o dia, é claro. Mas as canções, no corredor, eram certas, se eu saísse e só escutasse o bater das portas, as conversas em família, os latidos dos cães, bastava eu sentar num dos degraus e, esperançosa, aguardar por alguns minutos, que elas chegariam e se instalariam em mim,  numa festa que eu  participava sozinha.

  O canto vinha do apartamento de um casal bem idoso. Moravam sozinhos, eram bastante independentes, só precisavam de ajuda, às vezes, com as sacolas. Quando os conheci, caminhavam pela manhã e ao final da tarde, iam à igreja próxima, ao mercado e visitavam as filhas que moravam no mesmo bairro. Mas em um ano a saúde dele ficou muito debilitada e eu quase não o via mais, mas o canto dela continuava. Não sei se mais alguém ouvia, as filhas vinham pouco e, depois descobri, o homem estava surdo há muitos anos. Mas a voz dela era resistente. Mesmo nos dias mais difíceis, ela continuava.
 Quando o companheiro ficou internado por meses e depois ela quebrou uma das pernas numa queda em casa; ainda assim seu canto não parou.

  Por algumas semanas, ficou afastada do companheiro de quase cinquenta calendários e a voz vinha triste, atravessava melancólica a porta, ainda mais abafada, não pelo concreto, mas pela angústia da solidão dele e dela, que afastados dos olhos um do outro talvez ficassem menos saudáveis. Mas o seu canto não se ausentou nem nessa dor de velhice.
  E quando ele voltou, eu soube pelo canto dela; porque ficou ainda mais místico e mais potente nos tons. Mudei. O prédio não era mais verde, mas era maior e mais claro. O taco colado no jornal e os galhos da árvore na minha cama fizeram falta, mas a voz dela eu ainda ouvia, quando descia outras escadas; porque pareceu me tomar para sempre. Quando eu soube da morte dele, anos atrás, fiquei pensando em como ela resistia agora e se cantava, que música e em que tom saía. Pensei se o canto dela era abafado de dor e solidão ou arejado de aceitação e liberdade. As sacolas, as idas à missa, à praça, os caminhos que fazia, as visitas das filhas, se as portas eram trancadas e se ela se lembrava de fechar a válvula do gás em nada disso eu pensava. Mas o canto dela, eu quis muito que, além de mim, alguém ouvisse.

  Hoje, pela manhã, depois de já ter passado pelo prédio verde eu a vi caminhado pela rua. Está bastante velha, anda com dificuldade e parece mais frágil e pequena, vinha amparada por uma acompanhante jovem, que tinha um fone de ouvidos e com um andar mais apressado do que ela podia acompanhar. Cumprimentei-as, acho que ela não me reconheceu, mas sorriu. Lembrei da primeira música que ouvi no corredor, bem antes de saber quem cantava. E pensei no desperdício de um canto que ninguém ouve. O marido surdo, as filhas ocupadas, a acompanhante com um fone de ouvido e eu longe. Passei por ela, mas queria ter parado para dizer que ainda ouço o seu canto nos degraus.

   Duríssima visão, dulcíssima voz. A velha casa não me chama, vou ao encontro do canto dela. Eu sempre me encontrei no canto que ninguém mais ouve. Dos meus pés e da voz dela, ninguém se dá conta, mas continuamos, porque o que ninguém mais vê acaba por ser o que verdadeiramente somos. Já estava longe e o canto vinha insistente "Ó Deus salve o oratório,  ó Deus salve o oratório...". O canto dela resiste, porque nunca teve um destinatário certo. No fim, o canto que ninguém ouve é o que nos mantém para nós mesmos. O que eles ouvem da gente é só um pouco do que temos.




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