segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Já pode voltar a sonhar agora

  São mais de cinco da manhã e ela não dormiu, andou a madrugada inteira pela casa. Eu sei, porque
também não pude dormir. O piso de madeira do apartamento dá dimensão aos passos dela, não moro na mesma casa, mas tenho compartilhado da sua rotina; não por uma afinidade antiga, afeto conquistado ou altruísmo, mas porque ocorreu de ser assim. Desses eventos que não buscamos, às vezes até, nos desviamos, andamos no caminho contrário, mas é o destino quem traça os itinerários, não obedece aos nossos planos, não respeita os nossos medos e nos coloca definitivamente em frente ao irreversível.

  Os passos dela afastam a visita do sono ao meu apartamento. Ela que tem medo de estar sozinha, não sabe que não está; acho que não sabemos nunca sobre estarmos verdadeiramente acompanhados ou não. Ou se erra para mais, confiamos numa mão que não chegará ou erramos para menos, quando olhamos para uma estrada vazia e nem desconfiamos que há no acostamento olhos que nos salvarão em um momento de necessidade. Finjo que atravesso independente, certa da minha solidão, mas quase sempre tenho a esperança escondida de estar acompanhada sem saber.

  São quase seis e não dormimos, eu fiz planos de adiantar alguns trabalhos, descansar um pouco, caminhar pela manhã todos os dias, não ter pressa e ficar em silêncio, o máximo que me fosse permitido, no feriado. Ela deve ter feito planos mais ambiciosos, voltar a morar na cidade por um período curto, se resolver com a mãe, cuidar dela e, depois de descobrir que também carregava o gene adoecido, se restabelecer, voltar ao trabalho e à rotina no país que escolheu para viver há mais de vinte anos. Eu faço planos para dois ou três dias e ela tem na agenda um década pela frente desenhada. Ambas erramos. O destino é quem oferta o regalo; não é uma prateleira no supermercado, as nossas mãos só alcançam o detergente, se esta ventura nos pertencer. O feriado acaba e eu só terminei o trabalho, não consegui dormir com a angústia instalada no apartamento de cima, não caminhei todas as manhãs porque na maioria delas chovia muito e não pude me negar a dar respostas aos meus, sacrifiquei meu silêncio, porque ouvi os chamados.

   Já começou o dia e mais do que passos eu ouvi seus gemidos entranhados, sua voz controlada, suplicando para que a visita fosse embora ou, ao menos, se afastasse um pouco. Com a mãe dela eu tinha alguma proximidade, conversávamos amenidades, eu carregava suas sacolas, ela me dava pães caseiros e espadas de São Jorge, tenho quatro agora. Quando os passos noturnos da idosa começaram a ficar mais frequentes, minha insônia voltou e eu partilhava com ela do mesmo horizonte escurecendo e depois se alaranjando, clareando, até o céu escuro e estrelado se tornar branco, amarelo e, mais tarde, azul. Ela também gemia e rezava baixinho eu me lembrava da minha avó, que também era muito devota, e mesmo sem ter uma religião eu repetia com ela os terços, as ladainhas, as orações que eu nem me lembrava que sabia. Eu passava as noites com ela, não sei se ela soube. De manhã, eu ia para o trabalho cansada e ela sorria na janela; não sei como aguentava sorrir, talvez a paisagem noturna, que amanhecia, a fizesse ter esperanças. Eu tinha, as noites em claro que ela me deu, me são valiosas até hoje.

  São quase sete, chuvisca na rua, mas hoje eu vou caminhar. A mulher no apartamento de cima ainda está inquieta, sua visita não deu trégua. Arrumo a cama, procuro o tênis e visto uma malha, desço as escadas e ando pelo corredor molhado com cuidado, o piso está escorregadio. Olho para a janela do apartamento de cima e a mulher insone está na janela, não sorri como a mãe, mas tem um rosto sem medo - lembra tanto a mãe -  eu queria dizer isso a ela, mas talvez não pareça um bom agouro. O que sei da doença que enfraqueceu a mãe até ela murchar e ter seus dias podados definitivamente e que, agora, desalinhou os planos da filha é que à noite ela amedronta. É uma visita noturna que pede um copo d'água da porta e quando a dona da casa volta, encontra-a no sofá da sala, relutante em sair, por isso as noites são tão perturbadoras. As duas mulheres sempre foram muito discretas, mas a dor impacienta, depois de muito latejar, das mulheres resistirem com muita dignidade, a tortura aumenta e a visita provoca, mesmo a mãe muito religiosa, algumas vezes perdia a paciência e xingava, despejava sua raiva numa almofada e discursava contra alguma figura da sua memória. Depois, se acalmava, esquecia a visita indesejada no canto da sala e acho que ia para a janela contemplar o crepúsculo, se não dava esperanças, ao menos, era bonito ver.

  Voltei da caminhada, separei as correspondências e levei até o apartamento de cima, envelopes endereçados a mãe e a ela. Depois, no almoço, escutei algumas risadas, músicas e passos que não eram só dela, ouvi crianças correndo e me consolei pelo dia bom que os barulhos, a desordem e as visitas proporcionaram a ela.
  Já são seis da tarde, ela está sozinha, começa a escurecer, ao longe, a bateria ainda toca, algumas vozes roucas cantam sambas antigos em um microfone que emudece metade das frases. Choveu, mas o céu está estrelado. Lembro de uma oração que a vizinha de cima sempre fazia, que evocava uma noite tranquila e eu só peço que ela seja bonita.

  Assistir ao morrer e ao nascer de um dia, todo ele, inteiro, é uma possibilidade magnífica, nada dá um significado maior aos ciclos da vida. Morrer e nascer quase no mesmo instante, não demora, é mágico e é quando a face mais harmoniosa do destino nos entrega o que nem achávamos que merecíamos.
  É sinal de que mesmo que a noite tenha sido intranquila, depois que o dia nasce, mesmo sem dormir, já se pode voltar a sonhar. Só se recupera de um fim, depois de atingir um novo começo, as dores não são definitivas, viver também não é, morrer, talvez, também não seja. Entre as súplicas das duas mulheres, tive insônia, pena, medo, mas ganhei muitas noites contempladas e um outro jeito de passar pelas dores e noites em claro.



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