terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

É preciso saber não ter nada

  Para mergulhar completamente e poder respirar debaixo d'água, sem pressa de emergir, sem medo do silêncio do fundo, sem a suspeita de uma cãibra nas pernas, sem espantar a vida que se passa debaixo da superfície; para aproximar-me do que não é volátil, do que não se quebra, não perde, não entorta ou descolore numa mirada mais funda; para guardar os sentimentos - nem imagens, nem pessoas -  só as sensações que ampliam, dão asas e liberdade plena a mim e aos outros, eu tenho que estar atenta. É preciso me atentar  aos vícios, aos signos, aos tons na voz, aos tiques de cada pessoa, mais do que no que elas falam, são seus gestos que revelam. Preciso ouvir o silêncio delas, encarar suas ausências caladas, bem mais do que  as chegadas ostentadas. Tenho que ser cúmplice de suas fugas e testemunhar suas lutas; sem nunca contar a ninguém, se não me pedirem que fale.

  Tenho que me aproximar dos significados interiores, sentir o cheiro da roupa secando no varal, escutar o menino contar para o colega que sua mãe está grávida e que ele ganhou um boneco do irmão que ainda não nasceu. Tenho que lavar minha própria louça e frequentar as cozinhas de outras casas, mais do que as salas. Tenho que me vigiar e não pagar em dez vezes, se não tiver dinheiro para pagar em uma só. Tenho que usar os dois lados da folha, escrever com letra legível, informar as horas a quem me perguntar, a qualquer tempo e me certificar dos minutos contados. Tenho que abrir a porta para quem chega e acender a luz para que quiser sair; que não saiam no escuro. Tenho que avisar do ressalto do piso, enxugá-lo se estiver molhado e atender ao vendedor de gás, que chama pelo interfone. Preciso dar bom dia, ao menos, sorrir, sussurrar, gesticular o desejo de um bom dia a qualquer pessoa que encontre antes do meio dia.
  Tenho que ser vigilante com o vento que vem do leste e tomar o máximo no meu rosto, fechar os olhos e num suspiro profundo ser grata ao vento que traz o cheiro do leste nele.

Eu tenho que afastar os preconceitos, mesmo que eu não seja sua vítima. Tenho que impedir que me comandem os juízos e juízes que me privam do que não gosto, antes de conhecer suas outras camadas. Do arrogante, que quase sempre sofre de uma insegurança; do vaidoso, que quase sempre tem a autoestima abalada ou do carente, que não suporta mais abandonos.
  É preciso estar atenta ao tempo de duração da insistência e  ter coragem de desistir, de não querer mais, de não mandar recados, mensagens, bilhetes com corações e nem pensar tanto nos motivos de um afastamento. É preciso saber ir embora de mãos vazias e sem respostas, sem ter pena de mim ou raiva de toda a vida, ao redor, que continua alheia a minha desistência.   

  Tenho que exercitar os músculos do coração, me preparar para a velhice, mesmo que não tenha certeza da sua chegada ou que pareça muito distante, não me esquecer de fortalecer os joelhos e alongar o ciático. Preciso sorrir mais, sem motivos aparentes e alcançar visões mais distantes, tenho que usar mais as potencialidades do meu globo ocular, olhar para baixo, para o alto, para todos os lados e não me esquecer nunca de olhar para trás. Tenho que experimentar outros sabores de sorvete, sobremesas novas e bebidas que nunca tomei, tenho que me embriagar com mais frequência entre desconhecidos, sem temer.

  É preciso estar atenta mais ao amor que me dão, do que aquele que me negam. Tenho que aproximar-me mais de quem conhece os meus defeitos, do que dos que fazem uma imagem que eu não posso sustentar. É preciso estar atenta aos que me perguntam sobre o meu dia, que me oferecem café sem louça especial, que ensinam um chá para dor de dente e seguram minha mão antes de atravessar uma rua. Tenho que ser vigilante e manter minhas janelas abertas para os que me gritam nos dias de sol, com música da orquestra na rua, numa quinta-feira de manhã.

  Preciso assistir às aulas na última carteira e aprender enquanto os outros se curvam sobre o caderno e anotam a informação que desconhecem, tenho que prestar atenção nos gestos do colega, nas dúvidas do professor, ser mais próxima da minha ignorância e não me convencer nunca das certezas. Tenho que desconfiar de mim, do que falo, do que penso, de como eu resolvo uma equação e defendo uma ideia. Preciso limpar o quadro e me oferecer para carregar os livros para o professor, depois, varrer a sala e fechar as janelas. Tenho que trazer flores e as lições feitas a lápis.

  Tenho que ler o que não está na página, ouvir a música que nunca tocam, escrever as histórias que ninguém lê, alguém precisa manter a roda dos desimportantes, girando. Preciso circular as partes que me afetam de um texto no jornal, anotar as palavras que não sei e procurar no dicionário, nunca me esquecer do quão importante é um dicionário.
  Eu preciso estar atenta às semanas sem feriado, sem férias, sem salário e não me lamentar sozinha sobre uma falta tão pequena, mas tenho que ser mais solidária com os que, como eu,  não sabem fazer pão sem trigo, tenho que ser uma leal camarada.
  Tenho que pisar com segurança, mas sem muita dureza, preciso economizar sapatos e ser mais abundante nos passos. Preciso dançar mais e correr menos, ouvir mais e ouvir menos, até não precisar ouvir e saber antes que falem. Preciso desligar o telefone e atender mais a porta. Deixar a louça para mais tarde e tomar um café depois do almoço. Eu preciso aprender a não ter nada, nem hora, apontador, grafite 0.7, direção ou segurança; preciso aprender a soltar o corpo na hora certa e não me arrebentar no chão.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, entardecer do dia 03 de março de 2017

Prezada cronista das dores simpáticas, parassimpáticas e invernais do mundo

Li sua crônica de uma forma a princ´pio indiferente, fui lá, dei uma volta no mundo que me habita, retornei e reli. É uma crônica que nos faz mestres em servir ao outro. Fosse uma homilia, seria de encaixe perfeito ao jejum espiritual da quaresma.

Servir ao outro ... não, hoje não irei me estender. Amar ao próximo com a ti mesmo - deveria ser fato consumado, só que existem as adversidades:
- mas a tal uma pena de morte aqui,
- uma rejeição diametralmente oposta aos meus conceitos ali,
- uma cassação de direitos civis pelo poder do vil metal acolá,
- uma agressão aos valores morais, sexuais, educacionais trás-os-montes,
- a castração do sagrado pessoal, seja ele qual for, além-tejo

Enfim, todas estas coisas tão banais nesta mundana boçalidade crescente, transformam sua crônica numa anomalia que agride este maldito establishment da elite paranoica. Bem, haverá de existir sempre uma pedra no meio do caminho.

Mas não quero terminar assim, drummondiano. Quando na juventude conheci a poesia do Murilo Mendes, sempre achei que um dia iria compreende-la:

O mau samaritano


Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
Perto de um louco, de um triste, de um miserável,
Sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
Que outros precisam de mim que preciso de Deus
Quantas criaturas terão esperado de mim
Apenas um olhar – que eu recusei.

Um abraço,

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, sob sol arrasador do verão do dia 05 de março de 2017

Caro Paulo,
que bom que voltou ao texto, não me ofenderia se o perdesse entre as outras coisas do mundo, mas voltou a ele e ainda veio me dar o presente da sua reflexão...que bom, que bom!

Bem, acho que a sua leitura é sempre melhor até de quem escreve e é bem possível que os momentos finais do carnaval tenha me levado ao tempo de "reflexão, penitência e jejum" dos ensinamentos cristãos da infância.

Murilo Mendes é um conterrâneo cuja obra só conheci adulta. O nome sempre vagou pelas ruas, bocas, mas a poesia veio depois, para mim.
E essa você também deve conhecer, Paulo. Gosto tanto:

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas aos rios,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.

Abraços,
Ótima semana