segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Os almoços de domingo também voam

  Muito se perde no vento, os nomes que escolhemos, damos, conhecemos, aprendemos, fixamos, os nomes que não cansamos de chamar; mas que um dia, sem nem suspeitarmos, voa. Numa rajada inesperada de
vento e areia vai embora aquele nome. E nunca mais ousamos pronunciar seus fonemas.
  As palavras também se desprendem da boca, mais tarde, dos ouvidos, da memória e de cada célula que contaminou. E depois de pensarmos muito nelas, de nos apegarmos, nos torturarmos ou sermos consolados da dor e do medo, abraçadas por elas, fogem; escorregam pela porta de trás do carro e é como se nunca tivessem existido.

  Um pensamento o vento também leva,  latente, insistente, domador de lembranças e incendiário de destinos, de repente numa corrida, às seis da manhã na Avenida Brasil ele parte, abandona seu lacaio sozinho, livre dos seus dedos compridos e do peso da sua reincidência. Voltamos à casa com a falta, mas nem bem sabemos o que se perdeu. Foi-se, o vento levou-o, finalmente.
  Uma música antiga, repetida centena de vezes numa temporada, num ano, numa década de vida, um dia, depois de virarmos um copo com água na garganta, tem seus tons, suas cifras, seus toques largados num apartamento de dois quartos com janelas para os fundos de outro prédio. Nem num táxi ela toca mais, nem numa pasta insuspeita de músicas no computador ela permanece, batidas carregadas pela potência de ar.

  Os governos, os impérios, as dinastias, nada permanece. O vento leva, não vê? Foi-se César, assim como foram os czares, Tutancâmon, Gorbachev, Medvedev, Ferdinando, Cleópatra, Sui e Tang também passaram,  Pinochet, os generais e os comandantes;  todos passam. Alguns ainda passam todos os dias, mas agora, só nas páginas de livros escolares.
  As esculturas em bronze e mármore, os tapetes persas, as coroas de diamantes, os talheres cravejados de rubi, os pentes de marfim, os cabelos cheirando a sândalo, os favores, os medos provocados, as iras despertadas, as conquistas, tudo o vento do tempo carrega. É implacável. No sopro de um vento leve ou arrastados por um vendaval destruidor.

  Os endereços também são levados pelas curvas sinuosas dos ventos, num dia  as mãos fecham as persianas de uma casa na esquina, apagam suas luzes, acariciam o cachorro e no outro dia, outras mãos dão marteladas nos tijolos e começam um prédio de vinte oito andares, com portaria e garagem.
  A mesa de domingo o vento também leva, suas comidas, o barulho dos pratos, as risadas, o cheiro de alho e álcool, a notícia, o empate do time, o pai sentado na poltrona com as pernas cruzadas, olhando para o futuro que ele não verá, mas que já está instalado nessas outras pessoas, o nariz ralado da criança, seu choro e seu soluço, as conversas que falam sobre uma infinidade de assuntos e também não dizem nada. Os almoços de domingo descem a ladeira no final de um dia, numa brisa fresquinha e não voltam. O feijão, a farofa, a macarronada podem ser servidos noutros pratos, noutras mesas, noutros domingos, mas aquele que o vento decretou um fim nunca mais brilhará.

  Um sentimento muda de direção com o vento, um amigo, um amor, uma admiração bem profunda, um dia é arrancada pelo chicote invisível da ventania. Olhamos na bolsa, no lugar da estante onde ele sempre esteve, nas gavetas do criado mudo, nos interiores mais escuros do peito, mas basta uma visão desabrigada de ilusão, um relâmpago que ilumina o retrato, e nunca mais encontramos o que parecia tão caro a nossa existência. 
  Os sonhos são levantados pelo vento, arrastados pelo asfalto e conduzidos a uma estação de onde ninguém escapa. O cobrador confere o bilhete, carimba em vermelho que foi visto e procura alguém que não tenha pagado pela viagem.
- Ou paga pela passagem ou desce!

  As balsas, as barcas, as pequenas embarcações de travessia são ajudadas pelas correntes de ar, deixam margens, portos, pessoas que ficam e seus adeuses chorosos. O vento movimenta-as para longe de amor e tédio, de medo e esperança, de agonias e felicidades; entre partidas e começos, o vento faz o barco atravessar geografias na água.
  O vento dissipa as constâncias, afasta ou aproxima nuvens cinzas de chuva sobre as cidades ou os campos ressequidos, ignora os pedidos, sempre sabe o que vem buscar e na hora certa, ele captura sua presa e nunca mais devolve. O vento não é bom nem ruim, é só um sopro que movimenta a vida e faz as hélices do moinho aprenderem e a nunca mais pararem de girar.

  Só não se perde no vento,  depois de todas as rajadas, dos inesperados sopros, das muitas sacudidas: a pessoa do nome, o sentido da palavra, as decisões para afastar o pensamento, o balanço do corpo que nunca esqueceu o ritmo da canção, as consequências do poder nas muitas vidas, as lembranças da casa, o gosto do domingo, mesmo que não se tenha almoçado ainda, a transformação provocada pelas batidas no centro do peito por algo ou alguém, a viagem realizada ou não, ter colocado os pés no trem e sentido o cheiro do destino já foi muito bom.
  O  vento carrega o que se dissipa no ar, mas o cristalizado numa pessoa, nada arranca, nem vendavais diários, ininterruptos ou brisas leves enganadoras. Faço um pedido e jogo-o ao vento, ele é quem entrega a minha correspondência agora: que aquilo que permaneça seja mais pluma do que metal; sempre. 







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