quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Quem mais viu?

   Para onde ele vai? Para onde ele corre? Quem mais o viu  atravessando a cidade, cortando os pedestres, desafiando os carros, avançando os sinais? Quem mais viu a sua mochila para trás, com um dos bolsos meio aberto e o cabelo despenteado, que não deu tempo de lavar esta manhã? Quem mais viu sua camisa xadrez abotoada errada, com um dos lados na altura do cós da calça e o outro abaixo do bolso? Quem, além de mim, viu a sua pressa, urgência, seus cinco minutos para chegar até lá? Quem mais o viu abanando a mão para o porteiro de um dos prédios, tão rápido, que era chegada e despedida numa só mão? Quem mais o viu raio, ventania, cometa de calça jeans e tênis surrado?

  Alguém mais viu que os olhos dele ainda estavam sujos do sono da noite? E que tinha uma mancha branca perto da gola da camiseta de malha, por baixo da xadrez? Alguém mais viu que era  pasta de dentes?
Alguém viu que ele esqueceu o carregador na gaveta da mesa do escritório de onde ele trabalha e que, por isso, o celular está descarregado há mais de dez horas? E que talvez seja esse o desespero maior? Quantas chamadas não vistas? Quantas perguntas esperando respostas? Quantos pedidos, aguardando seu sinal para entregar? Quem mais viu que ele corre, porque talvez a resposta que ele espera já tenha chegado e ele não estava para recebê-la?

  Ele passa, eu dou dois passos, ele me ultrapassa, eu corro atrás. Nunca me vê. Nunca me viu, mas eu não sei abandonar a corrida. Perco uma das minhas sapatilhas, volto, recupero, coloco-a no pé de qualquer jeito e ele já passa em frente ao prédio verde, um carro sai, ele espera com os outros, sua submissão só acontece nos portões das garagens e eu o alcanço. Minha calça ficou presa na sapatilha desajeitada, eu seguro-a com uma das mãos, porque ele volta a correr. Talvez se eu o gritasse, se eu o pedisse para esperar, se o interrogasse o motivo das suas passadas largas e se, muito educadamente, eu sugerisse um flanar. Mas acho que ele não me ouviria, minha voz parece pequena toda vez que me aproximo dele.
  Na segunda, eu o perdi porque esperei o sinal fechar e ele não. Na terça, eu precisei passar no caixa eletrônico e ele continuou. Na quarta, uma bicicleta me cortou, quando eu atravessava e ele acelerou.
Hoje, quase derrubamos uma mulher no cruzamento das duas avenidas. Ele não viu, eu vi, parei, pedia desculpas a ela, enquanto ele atravessava mais dois sinais. Perdi-o de vista. Ele nunca se despede. Começa a correr antes de mim, porque quando entro na avenida, já o vejo de costas. Deve acordar mais cedo também.

  Eu tento andar ao seu lado, mas ele não sabe. Eu passo pela sua frente e ele desvia duro, certo, mais exato que as setas no asfalto. Ninguém chama a sua atenção, não às 7 de manhã. Não tem horas "por favor", não tem endereço desconhecido de pessoa perdida que o faça parar. Não tem uma música de algum carro ou conversa em ponto de ônibus que o faça andar mais lentamente, para ouvir a próxima estrofe ou o desfecho de um caso. Não tem letreiro, nem aviso no painel eletrônico que roube os seus minutos. Eu vejo todos: não deixar água parada, não ultrapassar o limite de velocidade da avenida, atividade física faz bem, bebida e direção não combinam, o Aedes Aegypti volta a atacar, cidade limpa é cidade linda. E um repertório de frases que brilham e não dizem nada. Ele sabe e não para; eu sei, mas vivo a esperança calma, buscando o sentido. A frase termina e ele já desapareceu.

  Eu atravesso a última rua, quem mais viu, meu desamparo de perdê-lo de novo? O elevador me espera, sozinha aperto o número. Tiro as sapatilhas, ajeito a calça, aperto o elástico do cabelo. Perco o tom no mantra, alguém mais ouviu? Faço a saudação ao sol, meus braços não aguentam muitos mergulhos, desço descontrolada, alguém viu quando eu bati meu nariz no mat? Na prancha eu conto dez respirações completas, desço suave e inspiro na cobra, levanto e expiro no cachorro olhando para baixo. Coloco as sapatilhas, desço pelas escadas e quando volto a rua ele não está. Alguém, por acaso, o viu entrar em algum prédio, entrar no elevador e conseguiu ver ele apertar um andar? Só amanhã eu volto a correr com ele. 

  Ele não me verá, não me deixará caminhar ao seu lado, não vai parar quando eu perder a sapatilha, nenhuma bicicleta vai cortar o seu caminho, nem da frase do painel ele vai querer saber. A camisa pode estar com os botões certos e o cabelo ele lavou hoje antes de dormir, mas amanhã vai lavar de novo porque estará amassado. Vai acordar no mesmo horário, fazer mais coisas e ter a mesma disposição para a corrida. O celular vai estar carregado, as noticias terão chegado ou não, as ligações poderão fazê-lo mudar de ruas e avenidas; talvez vá para outro país, mas vai continuar levantando a poeira do chão, ultrapassando poças, pedestres e sinais.

  Eu conto as respirações numa aula de ioga e ele os minutos para chegar ao seu lugar. Nós dois perdemos o ar fresco da manhã numa corrida que nem sei se acaba.
  Ele segue bem mais rápido do que eu, parece ter vinte anos, mas já estava na avenida quando eu entrei. Ele chega antes, vai embora depois, me faz correr atrás dele a avenida inteira, para depois, numa fração, não calculada, eu  perdê-lo, de novo, de novo, mais uma vez e mais outra. Se um dia eu o alcanço, não sei. Sei que assisto quando ele passa, correndo, sem nunca me dar lugar ao seu lado, que é esse o seu jeito de atravessar os sinais, antes dos carros. Embora eu saiba dele, vivemos em tempos que nunca se encontram. Se eu correr e um dia alcançá-lo, alguém mais poderá ver?
Amanhã vou tentar de novo, que  é esse o meu jeito de atravessar a avenida.





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