terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Para evitar a gastrite

  Se eu nunca tivesse aprendido o nome, ouvido a voz e a reconhecesse em qualquer coro do mundo, se eu
não tivesse prestado atenção nas linhas marrons do olho quase verde, se eu não conhecesse os calos das mãos e os relevos nas unhas, se eu não me distraísse, lembrando da maciez do cabelo espesso, se eu não soubesse que a minha liberdade tinha um cadeado que meu mesma segurava no pescoço toda vez que voava graciosa, eu não esperaria uma ligação a cada viagem ou que me desse respostas rápidas para minhas perguntas de uma semana. Se eu não ouvisse o nome e a voz, eu não teria gastrite quando demorasse a ouvir a voz do nome.

  Se eu não tivesse chorado a cada passo desse desgoverno, se eu não tivesse convocado greves nas quais ninguém apareceu, além de mim, ou empunhado bandeiras demasiado pesadas,  se eu dissesse com mais frequência "deixa" e "não me importo".
  Se não ficasse muitas horas em jejum, por não conseguir engolir nada, por causa de um choro atravessado na garganta nem comesse muito depressa porque a fila estava grande e eu atrasada.  Se eu dormisse menos e acordasse com mais calma para o café, eu não tinha gastrite.
  Se eu não fosse a passeatas vestida de vermelho, chorasse vermelho, sorrisse vermelho, lutasse vermelho, se eu não usasse batom vermelho todos os dias, eu não seria indesejada nunca, eu me sentaria num café, pediria um expresso duplo e o tomaria inteiro, porque eu não teria gastrite  

  Se eu não me preocupasse com a saúde dos meus pais, se eu não quisesse uma educação livre para as novas gerações, se eu nunca mais interviesse num clichê machista, eu nunca teria gastrite.
  Se eu não me importasse com os gritos do homem com o cachorro, se eu o cumprimentasse no corredor como uma boa vizinha, se eu não discordasse dele nas reuniões de condomínio, ele não ligaria o som de madrugada, não deixaria tantas coisas caírem no chão, enquanto eu meditava e eu dormiria sempre bem e, por isso, eu não teria gastrite.
  Se eu não interrompesse a festa deles com um assunto que esfria a comida e aquece as bebidas, se eu me vestisse com brilhos e ficasse calada eu iria a mais festas e não teria gastrite.

  Se eu não andasse com medo nunca, se eu bebesse, dançasse, beijasse o quanto e a quem quisesse e depois, tivesse ressaca, coração partido e band-aids nos pés, sem esses olhos que perseguem a felicidade da gente e nos culpam pelos riscos assumidos, se a minha melhor amiga só sorrisse comigo e depois aprendesse a chorar em dupla, sem conselhos tardios, eu nunca sentiria essa chama no abdômen.
  Se eu aceitasse as minhas impossibilidades e não fosse sempre tão condescendente com as dos outros, que me deixam na sala de visitas olhando para orquídea, como se ela fosse mais importante do que eu, eu não teria gastrite.

   Se eu não tivesse que publicar artigos repetidos, nos quais falo as mesmas coisas que alguém já falou de um outro jeito, só para preencher de inutilidades o meu lattes, que no fundo só veem os que querem ser melhores do que eu, eu nunca sentiria essa dor debaixo do peito, ameaçando subir até a língua.
  Se eu não tivesse que me indignar no trânsito, porque o motorista ao lado me corta, passa raspando no carro que eu não consigo pagar, só para não ter que parar no próximo sinal e chegar em algum lugar mais rápido do que eu, quando, no fim, todos chegaremos a um mesmo lugar na hora que o destino quiser, eu não sentiria esse vulcão em erupção, fabricando e respingando a lava para a minha traqueia, garganta e boca.
Meus lábios queimam, não é amor, é gastrite, baby. Só uma gastrite

  Meu próprio corpo fabrica o líquido ácido que destrói meu próprio corpo.  Se eu nunca tivesse aprendido o nome, a música favorita,a história de família, se eu não soubesse cada detalhe das suas férias em Guarapari, eu poderia ir a qualquer praia, até Guarapari, pisar em todas as conchas, entrar no mar e ser levada por uma onda e depois voltar vinte vezes e eu não teria gastrite no final de uma semana.
  Se eu não esperasse mais por um sinal seu, eu não teria gastrite. Não daria meu dinheiro para a indústria farmacêutica, para o plano de saúde ou para o médico que odeia mulheres com vestidos de malha comprados em Petrópolis.

  Se não cuidam do meu coração, que pensem em meu estômago. Se eu tivesse um apartamento com varanda e gostasse de batucar panelas, eu não teria gastrite nenhuma. Se eu não me importasse tanto ou nunca,  eu  jamais tomaria omeprazol nem faria esses exames que fazem a gente engolir cânulas, adormecer, ir tonta para casa e voltar no outro dia para ver a gastrite numa foto borrada.
  Eles pensam que ferem minha alma, mas antes enchem de buracos o meu estômago, se eu aprender a ser menos eu e mais outra, eu não terei gastrite. Se eu não escolhesse o vermelho... O branco é uma boa cor para os que não querem uma gastrite. O branco, a calma, o "deixa", o "não me importo", o esquecimento e a obediência nunca feriram um estômago.








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