domingo, 5 de fevereiro de 2017

Os fartamente famintos

  Morreu aos vinte e sete. Soube da idade pelo cartão em cima da mesa, que alguém deixou depois de ir à cerimônia de despedida. Ainda fazem cartões em memória de alguém cuja partida é recente e eu nem sabia. Tenho me despedido pouco, acho.
  Vinte e sete, sabe o que é isso? Se você tem mais, certamente vai achar muito pouco e se tem menos, possivelmente vai achar muito próximo. Eu ainda olhava a foto, tentava reconhecer a moça maquiada que sorria na imagem, enquanto falavam dela. Eu não a reconheci, não me lembrava dela, ainda que morássemos há mais de uma década a bem poucos metros uma da outra. Da janela do quarto dela eu me lembro muito bem, da fachada da casa, razoavelmente, e do bar do pai dela, onde ela trabalhava, com muita clareza; olho para a foto por todos os ângulos possíveis, mas ela ainda continua desconhecida.

  Falam sobre alguns detalhes físicos que a foto não alcançou:
- Estava sem cabelo, usava bandanas estampadas e pessoalmente era mais pálida.
Contam sobre o seu dia:
- Trabalhava no bar, de vez em quando, ficava sentada em alguma mesa na calçada, conversando com alguém.
Descrevem o seu jeito:
- Muito alegre, sociável. Cumprimentava todo mundo que passava.
Eu continuo não me lembrando.
- O pai dela já abriu o bar hoje, disse que o melhor é trabalhar para não ficar pensando tanto. Disse que a mãe está arrasada. Ela tem um irmão. Dele você lembra?
Não. Só  me lembro da janela do quarto dela. Mas eu balancei a cabeça para cima e para baixo, menti que me lembrava, constrangida por não ter boa memória agora.
- O pai dela ainda disse que sentia mais porque ela não queria ir. Há dez anos ela lutava contra a doença e não queria ir.
 E continuaram falando e eu segurando a foto, agora já sabia que eu não a conhecia, mas queria muito tê-la conhecido. Queria ter alguma lembrança da moça que sorri na foto.

  Ter vinte sete anos, lutar contra uma doença grave desde os dezessete, servir mesas todas as tardes e, mesmo assim, não querer ir, aumentava a minha sensação de perda. Não pela sua morte,  mas por não tê-la visto nunca ou me apercebido dela, o mais possível. Agora não era a idade, a proximidade das nossas casas, ela ser filha do homem do bar, eu conhecer a sua janela, nada eu lamentava mais do que ela não querer ir e eu não tê-la conhecido.
  Mais do que a ausência para os pais e irmão, mais do que as dezenas de lembranças que resgatam a cada vez que eu entorto a foto e espremo os olhos; a paixão dos outros, conhecidos ou não, me toca profundamente.

  Os famintos me comovem, os apetites de todos os tipos me afetam demasiadamente. Eu viro o pescoço para olhá-los, eu digo as horas para eles, ajudo com as malas, cedo meu lugar na fila, levo suas bagagens no meu colo a viagem toda sem nem me pedirem. Porque eles têm apetite e olhos brilhantes, porque sorriem quando se aproximam do prato e ficam muito inquietos quando se afastam. Os apaixonados nunca param, eles não descansam nem desanimam, frequentam os dois extremos, a alegria barulhenta ou a cólera incendiária. Os famintos nunca esperam pacientes a sua vez na fila, só agitam, reclamam da demora, conferem se a senha do caixa está certa, fazem rebeliões, resgatam feridos, descumprem as normas, porque a paixão age, desobedece a sua irmã mais velha, a paciência e não compreende seu irmão mais novo, o medo.

  Ela servia mesas, enquanto sorria, deixou uma legião de admiradores, porque bebeu até a última gota de vida que conseguiu sorver. Vida servida em bandeja de prata, em louça pintada a mão, em telhas de barro,  não interessa o lugar de onde ela vem. Vida para ser consumida, sem prescrição de dieta. Encher o prato e repetir, lamber os dedos e raspar cada canto do prato até não sobrar mais nada. Querer sempre mais, não por insatisfação, acúmulo ou apego, querer de gostar tanto, até não ter limites.

  A vida às vezes dói, se complica, parece fazer pirraça na calçada e a gente constrangida não sabendo como fazer para educá-la. Mais rigidez ou compreensão? Onde eu errei? Mas a existência, de repente, é uma pluma bem leve, pousando feliz nos desacontecimentos dos quais somos testemunhas diariamente.
Hoje ela não servirá a mesa, os pais dela vão envelhecer  vinte anos só nesta semana, o irmão vai evitar voltar para a casa, a vizinhança vai  se revezar para recontar lembranças e eu vou continuar, segurando a sua foto, a me lamentar pelo olhar que não trocamos. Eu trabalharia todos os dias no lugar dela se nos
conhecêssemos.

  Uma moça, na rua debaixo, que gostava tanto da vida e que talvez viva uma outra, mesmo que não a assista; uma em que todos se lembrem desse seu gosto  pela vida. Faminta, sedenta, dez anos de punhos cerrados para o destino que vinha buscá-la, dez anos de sorrisos toda vez que ele errava a sua janela. 
  Viver sem nunca se fartar. Ser valente e não recusar o convite para se sentar à mesa nunca. É esse o banquete que não se pode recusar o convite.

  O seu último prato  foi aos vinte e sete e eu me lembrarei dela, ainda, com muito apetite; com a fome implacável dos que enquanto comem, já esperam pelo próximo prato.
  Vontade insana de chorar uma semana, vontade louca de comer, beber e nunca frear o apetite. Vontade de passar pela janela dela e gritar, pedir que acorde e eu mesma servir um prato que a faça voltar com todo o apetite deste mundo.







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