domingo, 19 de fevereiro de 2017

Uma lata de coca zero e os dias para serem vividos

   Não sei se já nos conhecíamos, não estou certa de tê-los visto antes. Mas a cidade não é tão grande e
depois de um tempo frequentando a mesma região, os rostos sempre são muito familiares. Talvez o homem tenha me ajudado a escolher um peixe no supermercado, algum dia, talvez eu e a sua mulher tenhamos trocado algumas palavras, enquanto crescia a fila do caixa eletrônico. Talvez um dos dois tenha pedido ao ascensorista do elevador que me esperasse, enquanto eu apontava no corredor ou quem sabe tenham se lembrado de uma filha ou sobrinha ao trocarmos um olhar na avenida. Posso ter oferecido meu lugar para um deles no ônibus, posso ter ignorado o cansaço deles também. Ou quem sabe, partilhamos os mesmos médicos, dentistas ou tenhamos algum amigo em comum. Os espaços inevitavelmente são os mesmos, ao menos uma parte, uma praça, uma rua, dois ou três restaurantes, um dos shoppings.  Mas, agora, tudo parece embaçado, disforme e turvo. Minhas lembranças estremeceram de pavor e angústia e já nem sei como voltar a me lembrar dos rostos todos que eu gravei um dia.

  Tenho medo da cena. A cada volta vem sempre um detalhe novo, uma nova pessoa, um novo som, um sentimento novo. Repassei-a dezenas de vezes desde que aconteceu e numa função contrária a de um montador de cinema, a cada vez que a cena volta, ela se amplia, demora mais, ganha minutos numa progressão geométrica. É como se eu tivesse filmado dois segundos e já tivesse quase vinte horas de um filme. Estou na sala escura, o filme se estende e eu não consigo me levantar, ao contrário, só prolongo a experiência. Eu mesma filmei, edito a todo o tempo, projeto e assisto. No final, ficarei sozinha,  os créditos subindo e não terei ninguém a quem perguntar o que foi mesmo aquilo.

  Penso no que não está na cena, no que eu não pude testemunhar, mas que aconteceu. Na vida que tiveram, que mudou centena de vezes e que, provavelmente, nem tenham se apercebido de todas as mudanças. Penso nos diálogos que eles estabeleceram durante a convivência farta em números, nos muitos enganos que os ruídos de comunicação provocaram; nas dores de alma, quando se decepcionaram com a decisão de  um dos filhos ou quando tiveram que recusar uma promoção profissional, porque a família não se adaptaria tão bem sem um deles ou numa cidade com menos recursos; nas idas ao médico de um deles ou dos filhos e num pedido de  exame inusitado, a vela acesa na igreja das freiras, aquela sempre aberta, no centro.  Penso nas vezes em que  desacreditaram na continuidade da partilha ou naquelas muitas ausências que precisam ser experimentadas: de fé, confiança ou de uma mão. 

  Ainda estou do outro lado do canteiro, esperando o sinal fechar; um pequeno congestionamento, um motorista apressado e outros dois atrás e os carros acabam ocupando a faixa de pedestres bem a minha frente.  Espero ele se fechar de novo, já olho para o outro lado, tentando estabelecer minha rota, tudo com muita calma; pouco atrasada ainda.
- Ninguém vai perceber dez ou quinze minutos. Pouca coisa.

  Duas cabeças brancas, lado a lado, me chamam para elas. Esqueço a rota e me acalmo neles: bonitos, parceiros, amigos, próximos, amantes de muito tempo, brilhando ao sol de fevereiro. Fios brancos e fartos nela, com umas ondas acinzentadas e os dele bem finos e poucos. Se olham, falam alguma coisa, as cabeças mexem e os cabelos iluminam a esquina de concreto e  troncos marrons de árvores que ainda resistem, de acostumadas.  Do outro lado, acompanho o casal idoso atravessar uma rua, admiro a maciez dos passos, quase flutuo com eles, mas um ônibus vem ; o sinal está aberto. Como eu não vi o sinal? De onde veio o ônibus que eu não via? Por que tão rápido, se a rua é estreita e a esta hora é abarrotada de pedestres? Meu grito fica preso. Não posso olhar, mas também não consigo mais fechar os olhos ou virar o pescoço.
 

No primeiro banco do ônibus vermelho, o último passeio compartilhado de um casal antigo; embaixo da placa "falar somente o indispensável ao motorista", alguma coisa muito importante que não falariam mais; nos fones de ouvido de um adolescente uma música do The Clash que eles nunca ouviriam, porque os netos ainda eram pequenos demais para conhecer e querer dançar com os avós no meio da sala; na porta automática do transporte coletivo, a impossibilidade da entrada das duas vidas no asfalto; nos olhos da mãe, segurando um bebê, o susto de de dois rostos enrugados, apavorados com a velocidade que o tempo podia ganhar numa esquina. No vidro da frente do ônibus vermelho, a cena dramática, mas cotidiana das cidades, uma mulher e um homem, num segundo de desatenção, atropelados pela energia que não puderam mais ter.

  Não houve tempo para grito, nem meu nem deles ou de qualquer um que os visse, tampouco para que os freios obedecessem ao motorista. Eu já perdia a força das pernas, quando o homem de cabelo branco e ralo voltou numa manobra inesperada, com uma força surpreendente, com aquele mesmo corpo que parecia falido, grudou os pés no meio-fio, quase sentiu que a vida seria experimentar a ausência da companheira. Ela ia mais a frente, o braço direito do homem estendeu na frente do ônibus, sua mão encontrou a da mulher de ondas brancas na cabeça; os dedos de ambos entrelaçaram-se antes do fim . Ele a puxou para trás e devolveu ao seu par o que ela já nem pensava se tinha; como um braço ou uma perna no qual só pensamos quando nos falta, mesmo que por um instante, dormentes, anestesiados ou feridos
  Assustados, aliviados, abraçados na calçada, as lágrimas escorregaram mais dos olhos dele do que dos dela. Sentados no meio-fio, aninharam-se, um no peito do outro, alimentando de afeto e intimidade os dois corações desesperados de terror e agraciados por uma sorte.

  Ofereceram água aos dois, não aceitaram; quiseram levantá-los da calçada, pediram mais tempo. Ficaram muitos minutos abraçados, sem nenhuma palavra, sem distância, com as cabeças brancas grudadas, confundindo os cabelos.  Nas lágrimas do homem a perda do próprio futuro e a do futuro com ela ao lado; ele teve duas possibilidades muito próximas de morte, duas versões de uma despedida que não aconteceu.
Depois de algum tempo, ele se levantou, ajudou-a a se sentar nas escadas de um prédio, foi até o bar e voltou com uma coca-cola zero para ela. Regalo muito específico que só a intimidade poderia acertar.

  Ficaram os dois, sentados na escadaria, ele esperando ela se recuperar da quase morte; ela esperando ele se recuperar da quase ausência; uma pequena aglomeração incrédula, querendo se recuperar das suas quase-vidas. Tinham futuro ainda, os netos, a danças na sala, as carnes flácidas, os cabelos diminuindo, os músculos indo embora e uma força extraordinária, que aparecia e protelava o desamparo. O ônibus vermelho continuará a acelerar nas esquinas.
  "Dessa vez, a mão estava lá". A companheira se lembrará antes de dormir.
  O tempo que dura  uma morte é tão imprevisível quanto a duração de uma vida. O par de cabeças brancas se revirando nos travesseiros, hoje à noite, lembrando do que esteve dormente, mas agora, lateja. 



Nenhum comentário: