segunda-feira, 20 de março de 2017

A bilheteira do carrossel

    Atravessa cinco estações em poucos minutos. Antes de chegar à sexta, se levanta e mal fica de pé, alguém já ocupou o seu lugar. As pessoas estão cansadas logo cedo. As pessoas estão cansadas a qualquer hora do dia. Estão cansadas numa terça-feira, mesmo quando não está quente ou se chove. As pessoas continuam cansadas num sábado e, por isso, acordam tarde.  Estão cansadas de não saberem onde colocar as mãos, se não têm bolsos; de como resolver o problema, se ninguém as ouve;  estão cansadas de pagar o aluguel e quase não ver o céu da janela do apartamento dos fundos. As pessoas estão cansadas de trocar o pneu, de carimbar documentos, de conversar com um homem, ao telefone, sobre títulos de capitalização e apólices de seguro; estão cansadas de estarem cercadas por muros e, mesmo assim, terem medo. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo sagrado, todo dia é dia de disputarem o assento, porque estão cansadas demais.

  Estica as pernas, desamassa a roupa, ajeita a bolsa na frente do corpo, pede licença duas, três, quatro vezes até chegar à porta e esperar que ela se abra. Não precisa se esforçar, sai do metrô, arrastada por uma horda cuja estação final é a mesma dela.
  Anda pelo subsolo asséptico, com seguranças em volta das catracas, sobe as escadas e volta a ver a luz do dia. Atravessa a rua, caminha pelos mesmos dois quarteirões há meses e quase não nota as mudanças, só quando tem alguns cones, uma seta, homens cavando a rua e ela tenta se lembrar de como era antes de isolarem com faixas pretas e amarelas e telas vermelhas, porque não demora e a paisagem será outra ou a mesma de um outro jeito. Está cansada de mudarem as ruas e não se lembrar de como eram. Envelhece e não guarda novas memórias.

  Espera o carro avançar o semáforo amarelo, se oferece para acompanhar uma criança atravessando a avenida tão movimentada, mas o menino se assusta e afasta-se correndo, ela é quem quase causa um acidente. As pessoas estão cansadas de correrem de outras pessoas, de não poderem confiar, de terem medo, mas estão cansadas de olharem nos olhos e serem atacadas, de pararem para ouvir uma história e serem enganadas. Do outro lado da rua, o menino ajeita seus fones, possivelmente não a ouviu e temeu ser roubado. O celular está intacto, ele é mais ágil do que ela; nesta cidade, ela é mais vulnerável do que ele. Ele conhece melhor esse chão do que ela, ele está mais acostumado ao medo do que ela,  aquela avenida é dele e ele não tem oito anos ainda.

  Ela passa pela porta de vidro transparente, mas ninguém a vê, se vêm não a cumprimentam, ela se senta na quarta mesa e só amanhã vai ver o céu azul, de novo. São exatamente quinze minutos sob o céu do dia, quando sair vai ser noite, quando sair estará cansada demais para colecionar memórias, ficará com as mesmas de antes, o beijo quente do pai, o colo macio da mãe, o latido do cachorro, a campainha da vizinha, o cheiro da pomada de menta que abria as vias respiratórias, quando ficava doente e não ia à escola. Por que as memórias mais antigas são as mais vívidas? Que  fenômeno é este de sermos mais próximos do que é mais distante? O cheiro mais remoto é o primeiro que chega.
  Vai procurar a pomada da latinha na farmácia 24 horas, quando sair. Nunca mais descongestionou o nariz, isso deve influenciar no cansaço de todos os dias. Respiração curta, entrecortada, sobressaltada, precisaria de mais céu por dia, mas já acorda cansada e a poucos passos do túnel.

  Seleciona fotos de estranhos, escolhe os filtros, edita as cores: reforça o azul do céu que ela pouco vê, clareia os sorrisos, colore de rosa as bocas e faces, distancia os olhares e encaixa alguns produtos nas mesas deles. Elabora frases otimistas, despretensiosas, mas eficientes, se lembra das redações que fazia na escola, não podia ultrapassar trinta linhas, qualquer assunto tinha que caber entre vinte e cinco e trinta. Agora as linhas são ainda mais limitadas, mas o processo, no final, é o mesmo: agradar e ganhar uma boa nota.
  Às vezes, mergulha numa foto, tira os sapatos, anda na grama fresca, areia fofa ou carpete macio. Sorri com dentes tão brancos quanto os que ela acabou de pintar, olha para céu todos os minutos até não querer mais e não precisa desejar cadeiras, sua cama ou que a padaria não esteja cheia e com fila, porque nunca se cansa. Nas imagens do seu computador, todos estão descansados e saem ao sol.  Queria que existissem aquelas pessoas e lugares, queria acreditar nas frases que escreve, queria não estar entre as grades com trinta linhas, mas não encontra a terceira porta. No prédio, sobe todos os dias pela entrada principal e aprendeu a saída de incêndio num curso, logo que começou a trabalhar na empresa. São só essas duas, ainda, os caminhos que conhece.
  Fica orgulhosa da vida que inventa num cartaz, leva até ao chefe, ele pede para deixar o céu menos azul, "porque esse tom está um pouco artificial", ele diz. Ela não se lembra das cores possíveis de um céu de verdade, o vê tão pouco, só sabe como gostaria que ele fosse. Levanta o olhar para a sala, enquanto carrega seu lugar imaginário, todos estão cansados; então, volta para a sua foto e frase.

   Dez minutos antes das seis da tarde, ela envia sua vida sonhada pelo correio eletrônico, agora não será mais só dela. Quando sair, o céu será azul escuro, quase cinza, os carros terão mais pressa, os meninos correrão mais rápido e as pessoas continuarão cansadas e desassistidas de azul e fé. Amanhã voltará para a engrenagem da qual não se aparta. Suas redações de trinta linhas, dia desses, estarão espalhadas pela cidade e farão outros cansados sonharem com um este outro mundo que ela coloriu.
  Enquanto esse sonho não vem, a pressa dos carros só é aplacada por uma urgência, uma sirene longa e a luz vermelha do socorro colore as faces das pessoas cansadas. Ela se aproxima da avenida para ver mais uma vítima no escuro e reconhece os fones de ouvido, perdidos no chão. O menino que ela não precisou salvar pela manhã e que ninguém salvou no começo da noite, de olhos abertos, mergulhado no vermelho pavoroso da vida que ela nunca inventaria.

   Ela inventa o que não tem e às vezes acredita que é o melhor que pode ter. A bilheteira do carrossel nunca dá uma volta, não entra na fila, só dá as fichas e o troco. A bilheteira do carrossel nem é boa de matemática pura, só memorizou as possibilidades de combinações entre o dinheiro e o número de bilhetes pedidos. O parque é lindo, mas ela não sai do seu metro quadrado, decorado por luzes coloridas.

- Suba. É divertido lá em cima!
  Diz a bilheteira do carrossel; ela mesma nunca saiu da sua cabine.

   A bilheteira do carrossel oferece experiências e sonhos, mas não tira os olhos das linhas que precisa preencher todos os dias. A bilheteira do carrossel está cada dia mais presa às próprias experimentações de cores e frases. Um dia, ela mesma terá que aprender a desligar o carrossel.

  Se abaixa e recolhe os fones, irá guardá-los como a memória mais triste dos últimos anos. Poderiam ter se salvado, os dois, se ele não tivesse se acostumado a fugir e ela a admitir a sua inutilidade. Ele banhado de violência vermelha e ela presa, no alto, sem o azul. O carrossel só brilha à noite, mas nunca para de girar. Queria ter levado-o para um passeio e juntos subiriam nos cavalos cintilantes. Nenhum dos dois sonhou em cima do carrossel, ela vende bilhetes, ele não ouve mais músicas.



3 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 23 do março longevo e cansativo de 2017

Prezada prosadora das trinta linhas imaginárias (e compulsórias),

Estamos cansados. Aqui, na coluna ao lado desta sua percepção do real e tangível, há o pensamento (vivo) de Virginia Woolf, com o qual você nos alerta - "Não precisa ter pressa. Não há necessidade de brilhar. Não precisa ser ninguém além de si mesmo."

Como não sou um estudioso de Virginia Woolf, e o que sei são generalidades de domínio público da sua intrigante vida pessoal, acredito, pelo bilhete deixado ao marido que ela chegou ao limite de um cansaço físico. espiritual e intelectual.

Por que estou dizendo estas coisas? Porque a gente tem medo de ter medo, e isto alavanca uma série de processos altamente estressantes, que acabam nos cansando. Cansamos pelo medo.

Do ponto de vista bioquímico, o medo, o pânico, o stress e claro, o sexo, liberam catecolaminas (uma delas apelidada de adrenalina). São estas catecolaminas que fazem a pressão subir, o raciocínio lógico se esvair e a necessidade de fuga ou ataque ser colocada em prática, movida pelo sistema límbico de autopreservação da espécie. Enfim - sensação permanente de cansaço é motivada peço stress, gerador do medo. É o carrossel da sua conclusão. A roda das dores do mundo.

Mudando de assunto - Minha relação com Juiz de Fora é passional - lá cursei a universidade, conheci a moça com a qual me casei mais tarde e o fato é sai de lá querendo ter ficado lá para sempre - por outra moça? Claro, preferencialmente no Alto do Passos - tantos anos, e agora isto sendo desenterrado - rs.

Já que tomei a liberdade de falar de mim, nunca falei sobre isto, mas tenho um blog, que não tem a intenção literária do seu - é apenas para não ficar cansado.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, primeiras horas do dia 24 de março de 2017 (ano de deixar qualquer um cansado, especialmente do porvir)

Caro Paulo, leitor generoso das miúdas peças de uma engrenagem banal

Que bom que começou pela Woolf e por esta frase, recorte de um dos seus romances, tão precisa e terna. Sim, concordo que naquele bilhete(tão dolorido e afetuoso)destinado ao seu companheiro Leonard, Virgínia estivesse no limite do seu cansaço...lutar contra a própria mente deve ser um fardo duríssimo; ela foi até onde pode.
Virginia Woolf com medo de sua loucura, mergulhou-a definitivamente, quando sentiu que ela a consumiria. Tudo isto também são conjecturas baseadas em generalidades, como você mesmo disse.

Mas vejamos, como a química é também poesia...na cadência dessas substâncias é que estamos mais ou menos equilibrados; nos salvamos ou nos enredamos também a partir delas.

E que recordação! Não imaginava que conhecesse Juiz de Fora, menos ainda que mantivesse com minha cidade natal uma relação tão estreita...enfim, há também esses mistérios de voltas. Vai saber...

Gostaria de lê-lo, vou procurar o seu blog, alguma dica para encontrá-lo? Não sou uma boa detetive virtual...rs.
Mas não, aqui também é só uma prosa, é uma conversa sem a seriedade da literatura. A intenção é nenhuma, nada.
Abraços, ótimo final de semana

Paulo Abreu disse...

https://aopedapitangueira.blogspot.com.br/