quinta-feira, 16 de março de 2017

O último quadro da casa do amor

   Depois do grito, só um silêncio, dolorido, tenso; aterradora ausência mais completa de som. O depois do depois do grito foi uma calma de desistência, de entrega, admitir que não havia mais o que ser feito. Depois do grito, era o corpo sem vida na maca, sem possibilidade alguma de ressuscitação. Nem respirações nem choques ou injeções. Os braços dos socorristas estendidos ao longo do corpo, sem ação alguma, exaustos das tentativas, incompetentes por não salvarem a vida. Depois do grito, o silêncio da morte de algo.

   Quando ela gritou e pediu a separação nem o cachorro, sempre tão barulhento, latiu, o filho inquieto não chorou, o interfone não tocou mais naquele dia. Depois do grito, só um vazio; a dor de cabeça, um gosto ruim na boca,  ressaca recolhida, depois do carnaval. Banho frio, sopa morna, chá quente; o corpo amanhã cura, mas do grito ninguém se esqueceu mais. O menino vai crescer, o cão morrerá daqui uma década e cão e menino, passados muitos anos ainda se lembrarão desse grito.

  O instante logo depois do  grito foi profundamente desolador. Foi o depois da tempestade: recolher os cacos, levantar os prejuízos, puxar a água, secar e torcer o pano pacientemente, quantas vezes fossem necessárias e depois do trabalho, sentar na soleira da porta, olhar para o céu e ter uma felicidade discreta, latejando no peito, só por estar viva depois do dilúvio.
   Quando o grito já havia abandonado este mundo, perdi o apetite de comida, de música, de qualquer alegria comezinha que fosse. Não tive vontade de levantar do sofá. Quis ficar imóvel e até sem respirar, se pudesse. Quis me esforçar o mínimo. Como se o grito também quebrasse alguma coisa em mim. Não respondi às mensagens, não trabalhei até tarde, não reguei as plantas. Foi um luto inconsciente pela culpa de saber que o grito viria e não poder fazer nada para evitá-lo. A limitada habilidade de uma vidente que prevê o futuro, mas não tem meios de interferir nele.

  Os dias seguintes foram como todos os outros dias, ao menos, aparentemente. Escutava risadas, as piadas entre o casal, os latidos do cachorro de olhos molhados, o chamado do homem do gás, as conversas entre vizinhas, o filho reclamando do banho, da comida e da escola, a furadeira, atravessando o tijolo para pregarem um quadro. Se penduram um quadro novo em casa, haverá futuro; tentarão um. A desistência quase sempre atravessa pequenos adiamentos: no projeto para uma viagem ou mudança, na compra de um móvel qualquer, nos planos para um feriado distante, na pintura de uma casa e nos quadros que evitamos pendurar na parede. Mas depois do grito, houve o quadro. Se eu fosse astróloga, eu veria a separação marcada numa linha colorida, sob a regência de um planeta difícil, mas eu omitiria a informação, se tivesse escutado as marteladas no prego, na parede deles.

  Soube antes do grito. Fui sabendo da separação deles por pequenos sinais, caminhos tortos que tomavam, enquanto eu, no banho sussurrava:
- Não é assim. Isso vai dar merda!

   Foi triste ver o amor morrendo, foi brutal assistir a um assassinato com cumplicidade, enquanto eu tomava banho, regava plantas ou fazia o jantar. Um desferia um golpe e o outro, nem esperava o amor recuperar o fôlego ou um pouco da cor, dava um chute. As frases ácidas, as piadas dolorosas, incitando os sorrisos amarelos de ambos, o gracejo mordaz, as críticas tacanhas. A face mais miserável das vinganças; ferir a quem eu não posso mais amar, tentar matar aquele que não me permite mais ser quem eu era, enquanto o amava. Eu vi o amor rolando pelo asfalto, num vazamento pequenininho, bem no início, quase ninguém notava, até a água, agora, correr caudalosa rua abaixo.

   Dia desses penduraram o quadro, mas foi só. Nenhum movimento maior que pudesse estancar o vazamento. A água continua ganhado o asfalto, nem a figura bonita na parede consegue evitar que eles continuem a desferir os golpes, que só fazem jorrar mais água. Bem antes do grito, na casa do amor, no mapa do casal, havia um obstáculo. Depois do grito, nessa mesma casa, há uma ruptura. Se eu passasse o giz de cera, se emendasse a linha interrompida...De nada adiantaria. Identifico as casas astrais, as combinações entre ascendentes, signos lunares e solares, mas nada impede, a qualquer dupla que seja, de dizimarem  um sentimento quando estão dispostos a isto. Touro, com ascendente em virgem e escorpião, com ascendente em libra, organizam, limpam e decoram a casa, antes de incendiá-la.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, Dia de São José (com chuva e frio) do ano da graça de 2017

Cara Amanda, maestra do caos dos amores em cacos

Antes que indague - não, eu não penso no título acadêmico a ser-lhe prestado nos comentários - sai saindo assim sem saber como.

Hoje fala do amor, ah! do fim do amor.
(em tempo nesta pausa - eu não sabia do cantor compositor do texto - que sujeito bom de serviço - parabéns pela escolha)

Assim disse Amanda - "A limitada habilidade de uma vidente que prevê o futuro, mas não tem meios de interferir nele. "

Assim naveguei no passado, em Amália Rodrigues, de um fado de Armando ieira Pinto, que está para seu texto no contexto supra-citado (credo .. rs). Ele termina assim: Ai, lucidez desatino - De ler no próprio destino - Sem poder mudar-lhe a sorte

O fado chama-se "Maldição" (https://www.youtube.com/watch?v=D1a2BV9xq8Q)

Que destino ou maldição
Manda em nós, meu coração
Um do outro assim perdidos?
Somos dois gritos calados
Dois fados desencontrados
Dois amantes desunidos

Somos dois gritos calados
Dois fados desencontrados
Dois amantes desunidos

Por ti sofro e vou morrendo
Não te encontro, nem te entendo
Amo e odeio sem razão
Coração quando te cansas?
Das nossas mortas esperanças
Quando páras coração?

Coração quando te cansas?
Das nossas mortas esperanças
Quando páras coração?

Nesta luta, nesta agonia
Canto e choro de alegria
Sou feliz e desgraçada
Que sina tua, meu peito
Que nunca estás satisfeito
Que dás tudo e não tens nada!

Que sina tua, meu peito
Que nunca estás satisfeito
Que dás tudo e não tens nada!

Ai, gelada solidão
Que tu me dás coração
Não há vida nem há morte
Ai, lucidez desatino
De ler no próprio destino
Sem poder mudar-lhe a sorte

Ai, lucidez desatino
De ler no próprio destino
Sem poder mudar-lhe a sorte

Um abraço

Paulo





Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 20 de março de 2017

Caro Paulo, semeador de inesperadas referências

Os títulos acadêmicos que me outorga são os melhores que já recebi na vida; verdade! Nenhum com mais valor.

O fado...não é a primeira vez que passeia por aqui com um regalo português desses nas mãos. E este é especialmente bonito. Deve gritar a ascendência nas minhas veias, porque o fado me encanta. Ele inteiro é lindíssimo. E a parte que identificou semelhança parece saída da mesma fonte.

Sim, o moço cantor é bom mesmo de serviço. Tem coisas lindas na manga. Que bom que pude levar algo bonito para você também.

Abraços, ótima semana!