quinta-feira, 9 de março de 2017

Do que habita não abandona. Pode não ser mais, mas nunca mais vai embora

  É mais fácil nos acostumarmos a ausência das pessoas do que a falta de quem nós éramos antes delas partirem. Pode ser muito duro, no início, mas acostuma-se a não ouvir mais a voz, a não ter mais o peso das mãos sobre as suas,  não ver mais a chamada perdida no telefone do número para o qual nunca mais ligaremos,  não ter mais a opinião que desequilibrava nossas certezas, não saber mais dos gostos, do gosto da outra pele, do cheiro, da temperatura do outro corpo, do pelo na pia, que não é o seu e de todos os vestígios que provam a existência de alguém que o habita além de você mesmo. Acostuma-se assistir a uma comédia e nunca saber ao certo se ouviria uma risada ou um suspiro de contrariedade, acostuma-se a encontrar a louça suja, na volta do trabalho, que deixamos pela manhã ou a ordem da casa que limpamos no dia anterior. Acostuma-se a ver, ter e ser exatamente ao que era na noite, antes de dormirmos, na manhã seguinte, sem marcas, mágoas ou novidades. 

   Acostuma-se a não tentar entender a mudança na cor dos olhos; um dia verdes noutro não.
-  Os olhos mudam de cor pela luz ou pelo humor? Já reparei que ficam mais verdes quando você está mais alegre, mas também já percebi que se o dia está mais claro, eles ficam mais claros também.
  Acostuma-se a não ter mais dúvidas sobre a cor dos olhos, porque eles nem nos olham mais, mas não nos habituamos a não sermos vistos da maneira que só aqueles olhos podiam nos ver. Outros olhos verão novas pessoas em nós,  descobertas por outras perspectivas, mas e aquela, onde foi enterrada? Para depositarmos flores no seu túmulo.
  Se viajamos, acostumamos a não pensarmos mais se tomou o remédio, se visitou a sua tia, se aguou as plantas, ainda tem alguma? Se desistiu das aulas de piano, se ainda pinta. Sua casa está uma bagunça agora? Tem alguém que troca os lençóis da cama?

   Mas não nos acostumamos a não deixar um bilhete sobre a bancada da cozinha, lembrando do gás, do aluguel e do remédio e a assinar com um nome de algum personagem de quem só nós dois soubéssemos rir. Não nos acostumamos a não chamar de tia, uma tia que não é irmã da nossa mãe nem do nosso pai, não acostumamos a não sermos a heroína, que salva plantas do destino da morte por sede, de não ter que desviar de um piano, que quase não cabe na sala ou de não encontrarmos uma toalha, um tapete, um pano de prato com respingos de cor. Não nos acostumamos a não sermos mais a palavra, o sentimento ou as músicas que decoramos, de tanto a outra voz cantarolar. Não nos acostumamos a mentir que não nos lembramos mais, a  fingir que mantemos as memórias num fundo escuro de uma gaveta do guarda-roupas, quando elas nunca desgrudaram de nós; mesmo que façamos isso várias vezes por dia para todas as pessoas que perguntarem como estamos.  

  Ela sempre subia a rua com uma muda de planta, um vaso, uma raiz, com alguma sacola com adubos, vermífugos ou pedrinhas brancas que decoravam os pés das suas flores. Subia as escadas do ônibus verde, sempre com a ajuda de algum vizinho, com um embrulho difícil de alojar entre os bancos. Plantava, plantava. Eu a vi mais vezes com as mãos na terra do que qualquer outra pessoa que já conheci. Meu avó era agricultor e nem mesmo ele eu vi tantas vezes com as mãos marrons como as dela. Toda lembrança que eu tenho dela, tem um cenário verde ou marrom, cheira a terra molhada e tem olhos grandes e brilhantes, atrás de folhas verdes. Subindo a rua, carregando um  coqueiro pequeno, uma avenca, palmeira ou papiro.
  A entrada da sua casa é de um verde que não se esquece fácil. Morei em outras ruas, bairros, vi casas maiores que a dela, jardins que eu queria para mim, mas o daquela casa é algo comovente. Nunca passei por lá sem desejar ser uma abelha, um grilo, um caramujo que andasse sobre a terra fofa e desviasse das pedrinhas brancas que protegem e enfeitam os pés de rosas.

  Ela envelheceu, passou a carregar menos peso, plantas menores e a pedir que a ajudassem com as suas sacolas. Ficava doente mais vezes ao ano e por mais tempo em cada vez; aos invernos vinha pouco ao jardim, mas sempre voltava a ele. Eram dois os moradores oficiais da casa, ela e o marido; mas no jardim, a vida era múltipla e abundante. Não sei pensar nela sem um cenário verde e as mãos marcadas de terra e barro. Não sei pensar no seu marido sem ela ou no jardim, vivendo por outras mãos. 

  Há três meses ele vive só. Há doze semanas o jardim é mantido por ele. Algumas plantas parecem mais murchas, outras não vingaram e morreram sem crescer. Não sei se ele, como ela, tem habilidade com as plantas e flores, se sabe a época de plantar, de adubar, de limpar, podar e replantar alguma muda. Mas tem se esforçado. Ele rega as plantas que ela deixou e parece que ainda sustenta a vida dela absolutamente intacta. Algumas dezenas de anos compartilhados com a companheira e ele lentamente se acostuma a almoçar sozinho, ir ao banco, supermercado e a plantar flores, mas não sei se ele se habitua a não ouvir o barulho da terra cavada, da água molhando o solo e das pedras se chocando, enquanto lia o jornal ou limpava uma calha do telhado. Não ter as mãos dela, ajeitando seu colarinho é algo a que terá de se acostumar, mas não sentir a mão dela macia, roçando o seu pescoço enquanto desamassava o colarinho da sua camisa, não sentir um cheiro de terra, misturado aos dedos já limpos dela, não é para esta vida.

  Ele liga a mangueira, acho que chora enquanto a água cai. A água molhando as folhas e é certo que ela também se refresca nalgum lugar. Ela tem o que todos gostaríamos, uma continuidade infinita nos olhos e nas mãos de alguém. Ele tem o que nem todos gostamos, mas que fazem de nós o que somos, uma âncora lançada num tempo, atravessada no peito, invisível para quem nunca viu o continente nem o barco. As memórias de ambos um dia estarão cravadas nas rosas, antúrios e begônias e mesmo depois delas, mesmo quando cimentarem o santuário de lembranças de ambos, eles terão habitado a água, a terra, as pedras, os cheiros, as primeiras visões do domingo de algum vizinho. Sinto tanto a falta dela quanto sinto dele, quando era ela quem cuidava do jardim.
  Despedimos, derramamos lágrimas, seguimos com a vida sem o quente da outra pessoa, mas o tempo, esse nunca mais vai embora. Os calendários passam, os números são substituídos, envelhecemos e conhecemos outros de nós em outros olhos, mas quem nós permitimos que nos habitasse um dia, mesmo que parta, não leva consigo toda a história. Ele liga a mangueira, aproveita para chorar a ausência de quem ela levou e por ela, também, que não plantará mais rosas ou novas memórias.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, quase 13 de março do corrente ano

Estimada cronista da alma humana do ponto de vista feminino

Encanta, encanta muito ler esta candura de texto traçando a resiliência em cada um de nós. Que bom ter você assim e aqui, parecendo louca, sendo ou nãolouca e sempre sensata.

Hoje é só até aqui. Depois conto, outro dia, mais sobre a relação que tenho com sua cidade natal confessada outro dia por você. Assim findo hoje evocando Murilo Mendes, em parte, com a devida licença poética:

Mulher
Ora opaca ora translúcida
Submarina ou vegetal
Assumes todas as formas,
Desposas o movimento.

Um abraço

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 13 de março(quase raiando) de 2017

Querido Paulo,
muito bom quando vem e, mais ainda, quando nessas visitas muito delicadas, deixa por aqui suas escolhas poéticas - sempre sublimes. Que bom que a história o tocou, fico contente também. A casa está sempre aberta e o café é sempre fresco, como nas casas mineiras de um tempo.

PS:fiquei curiosa sobre a sua relação com a cidade do Murilo Mendes (este sim bem conhecido) e um pouco minha também.

Abraços, ótima semana