domingo, 9 de abril de 2017

Se Ela não voltar não saberei o que fazer com aquilo que sei

  Tenho entrado e saído de lugares com uma habilidade que nunca achei que teria. Tenho entrado e saído de lugares que nunca me abandonam. Tenho entrado e nunca saído dos lugares. Tenho passado e deixado os lugares entrarem e saírem de mim. Tenho entrado e saído de lugares que passam por mim, às vezes voltam, às vezes nunca mais. Tenho entrado e saído de lugares que entram, sem nunca saírem de mim.

  Foi uma fábrica, eu me lembro de vê-la nos jornais da cidade. Pé direito alto, construção alaranjada e cinza, de tijolo e concreto, escadas erguidas sobre vigas de ferro. Dura, forte, construção indestrutível.  Não é mais uma fábrica, mas continua alta e talvez menos nobre. Se eu não me demorasse lá ou se eu trancafiasse os meus olhos numa cela escura com uma única foto daquelas do jornal antigo, eu acharia as pessoas também cinzas e alaranjadas, mas não foi o caso. Não há janelas baixas ou portas de vidro que deixem a luz de fora entrar, não se vê o céu de fora, se chover, cair meteoros ou o traçado de um arco-íris bonito passar sobre o seu telhado colonial, só saberemos ao sairmos pelo portão vermelho. Mas não é tão ruim quanto poderia, porque dentro tem gente e gente é colorida e barulhenta. Existe vida no prédio antigo do centro. Um painel  de figuras abstratas e cores vibrantes é uma tentativa de instalar uma nova função e abrigar outras histórias.

  Cheguei a pouco e vou conhecendo os corredores, me afasto aos poucos do que já conheço e testo passos, não vou até o fundo do corredor se não puder ver a porta por onde entrei. Com as pessoas, o movimento é o mesmo, vou estendendo olhares e demorando mais à medida que sou correspondida. Sorrio discretamente e se me devolvem o sorriso, só então, o amplio.
  São todas mulheres, são mais velhas, muito acolhedoras e gostam de conversar. Volto ao conforto do feminino, ao colo quente, às mãos enrugadas e às histórias que não têm final, porque quase sempre são interrompidas por outras que se entrecruzam, a linearidade é deixada de lado, depois de uma pergunta que leva à narradora a tecer novos pontos e a abrir novas costuras. Diferentes entre si, as mulheres, eu não consigo imaginar uma vida comum entre elas, antes de estarem aqui, agora por motivos semelhantes. No fundo da sala, só uma delas não me aborda, se mantém ocupada e independente. Talvez eu não tenha mesmo nada para oferecê-la.

  Nos dias seguintes, é sempre ela a primeira a quem vejo chegar. Usa calça jeans, camiseta de malha branca e tênis infantil. Não calça mais do que 35. Chega empurrando uma mala de rodinhas e parece muito tímida. Se eu a visse de costas, talvez a confundisse com um menino, por causa do corpo pequeno, magro, dos cabelos curtos e dos pés. Mas é uma mulher idosa, tem rugas, muitas, e mãos marcadas com calos e artroses nos dedos, por isso tem muita dificuldade com a coordenação motora fina. Sentamos lado a lado e, pela primeira vez, ela me pede um auxílio, seguido por outro e outro. Passamos horas juntas, mas ela não se afasta da porta de entrada, assim como eu, não vai ao final do corredor, se não puder deixar a mão na maçaneta. Seguimos os dias em cadeiras coladas, mas ainda assim, sem sabermos muito uma da outra. Ela se apoia nas minhas informações e, em troca, silenciosa, me oferece uma cadeira, café ou água, erguendo as sobrancelhas e apontando para o objeto ofertado. Com ninguém mais do grupo ela estabelece esse cuidado e, também, acho que as outras mulheres se acostumaram com a ausência de voz dela; são relações fincadas no respeito, cada uma já sabe onde está o conforto de cada história.

  Quando a vejo ir embora, pelos corredores sem ventilação e sob a mesma luz artificial a qualquer hora, arrastando sua mala pesada e pés de menino, tenho vontade de gritar que espere e dar um abraço. Tenho medo de não ter sido suporte suficiente, de não ter podido ser um fio de luz que ela precisa, de não poder oferecer o afeto do qual ela parece sempre querer manter-se afastada.
  Não sei o porquê da mala todos os dias, mas também não pergunto. Não sei absolutamente nada sobre a história que ela cala, mas alerto-a quando usar a letra que ela quase sempre se esquece. Não sei quantos anos ela tem, nunca fui boa em supor idades e, agora,  tenho me importado com esse detalhe cada dia menos. Quantas voltas ela viu a Terra dar ao redor do sol é bem menos importante, do que se ela viu hoje o sol.
  Na mala, empurra o fardo de ter sido afastada da história oficial, dos eventos políticos, da possibilidade de conviver em uma dimensão libertária e libertadora, da poesia, da prosa, das notícias do jornal e de uma cultura que sobrevive, mantendo uma margem larga de oprimidos. Quem fez isso a Ela? Por que impediram que os seus pés 35 frequentassem os lugares que também deveriam pertencer a Ela? Por que acostumaram-na a sobreviver calada?

- Eu ajudei a fazer uma faxina essa semana.
  Escrevemos a sentença de sua autoria no seu caderno. Não foi ao cinema, não viajou, não leu um livro interessante, não foi à casa dos filhos que não teve, tampouco segurou o neto que nunca nascerá. Mas ajudou a limpar a casa de alguém, que nem sei se já reparou no anel dourado, com um nome gravado, que ela ostenta no anelar esquerdo.
  Eu tento dar flores, ensinar o "m" e o "n", colocar numa folha a sua voz, guardada por tantos anos  e ela me ensina a ser grandiosa, forte e insistente, mesmo com menos de um metro e cinquenta centímetros e pés 35. Sônia é o seu nome. Sônia é alguém a quem não se devia esquecer nunca, mas cujo nome só saberemos quando ela aprender a escrevê-lo no seu caderno de pautas azuis.

  O que nos separa é só uma pilha de livros, barreira absolutamente transponível. Passamos por entre as páginas, Ela segura a minha mão, porque é mais forte, e sabe disso, e atravessamos para um lado em que as nossas semelhanças se reconheçam. Ela é mulher, eu também sou, Ela tem insistência num sonho, Eu também tenho, Ela me oferece cadeira e eu escrevo no papel uma palavra onde ela possa descansar. A habilidade da ternura num lugar tão duro só me ensina que eu também posso ser resistente no afeto. Por favor, Sônia, me ensina a esquecer o "m" e o "n", porque eles não enchem uma mala. Ela se levanta, vai ao banheiro e eu me sinto completamente desabrigada. Quase choro, quando ela se afasta da porta e segue ao final de um corredor que eu desconheço.

   Ela vai voltar, tem que voltar. Porque não saberemos o que fazer sem Ela. Eu não sei ir a um lugar e não trazê-lo comigo. Há sempre algo que nos chama a voltar, há sempre alguém que nos inspira na esperança. Sônia, eu ensino você escrever "obrigada", mas "coragem" quem me ensinou foi você. Sônia tão forte quanto o prédio, tão pulsante quanto o painel grafitado. Se Ela não voltar eu não saberei o que fazer com aquilo que sei. Silenciosa e invisível, se não voltar, ninguém mais poderá existir aqui, Sônia, não do mesmo jeito que você nos deixou.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, nesta terça-feira cinzenta de tempos pascais

Prezada Amanda

Perceptora das insônias de sodalícios

Eu era criança e queria um dia saber sobre o que tanto conversam os idosos. Morava numa rua descalça, eu também de pés descalços, num tempo em que a pobreza tinha lá seu ar de nobreza. Bem, certo é que passei a desejar aprender com os idosos.

Um dia, me afastando de um dos intermináveis jogos de futebol na rua, me aproximei de dois idosos, queria escutar suas conversas. Estavam disputando qual colocaria a perna num lugar mais alto do poste. Fiquei meio decepcionado, meio contemplado - eles são iguais a mim só que velhos.

Anos depois, já adulto, visitei um asilo na minha cidade da infância. Um deles - o que ganhou a disputa estava lá. Fiquei feliz com aquilo. Nos cumprimentamos e parti.

De outra vez, ao visitar outro asilo, em outra cidade acompanhado de uma amiga que trabalhava ali, vi crianças de uma escola passarem e jogarem pedras nos idosos ... puxa vida - jogavam pedras - então era isto que estavam aprendendo em casa. Deveriam residir em casas tristes, muito tristes.

Eu adorava escutar meus avós - aprendi muito com eles. É isto, são coisas que entram e nunca mais saem.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 12 de abril de 2017

Caro Paulo,
que relato mais bonito! A maturidade foi sempre um lugar em que eu gostava de visitar, me sentia acolhida. Gosto, ainda gosto muito e, suspeito, gosto mais a cada passo que me aproximo dela.
Gosto dos extremos da vida, infância e velhice são dois estados para se estar e aprender sempre. A vida adulta, me parece ser uma espécie de purgatório (nada de realmente incrível acontece...aprendo até sem saber. Uma sorte nunca ter tido vontade de jogar-lhes pedras.
Abraços,
ótima semana