quarta-feira, 17 de maio de 2017

Mulheres em trânsito

  Há tantos dias que ela passa, que eu não sei dizer quantos. Não me lembro da primeira vez que a vi, se sempre esteve ou fui eu quem inventou um passado para nós duas. Mas me lembro dela como uma vizinha da casa verde da rua debaixo que me deixava pegar uma rosa do seu jardim, pela grade, no  dia do meu aniversário ou a professora na infância que escrevia o meu nome no quadro, para eu copiar, ela dar um visto e eu voltar para casa orgulhosa de ter um nome que saía da minha mão ou, ainda, a amiga da minha mãe, que fazia tranças no meu cabelo, porque a minha mãe não fazia. Ela é um passado desses, uma memória afetuosa, que poderia ter se diluído na distância, descontinuado na inutilidade ou ter sido  já apagada junto com o giz no quadro, há muito. Mas que passeia, logo ali, volta e surpreende, numa esquina, numa quarta-feira, numa ida ao dentista no horário do almoço. 

  Sempre a vejo no centro, atravessando ruas, andando pelas calçadas, indo ou voltando de algum lugar, nunca a vi sentada num ponto de ônibus, por exemplo, ou esperando, com uma senha nas mãos, numa fila do banco ou por um pão fresco na padaria. Ela é uma mulher em trânsito. Mas já a vi tomando um ônibus, mas assim: em pé e sempre mais rápida do que eu consigo acompanhar, me perco dela todas as vezes. Não sei de onde vem e nunca vejo ela chegar, ela só passa, sempre. 
  O andar é seguro, uma  bengala firme segue na frente e testa o piso antes dela chegar. Nas retas, ela segue muito bem com a sua individualidade e independência, mas nas curvas, às vezes precisa confirmar se segue para a direita ou esquerda, se já chegou mesmo ao prédio que queria. Então, aborda alguém que, em geral, é solícito, solidário e oferece um braço e direção. Ela aceita, temporariamente, que alguém a guie.

  Ela é cega,  não sei se eu sempre soube ou se me acostumei aos poucos com os óculos escuros e a bengala que a protege de alguns sobressaltos. E, hoje, esteve sentada a minha frente numa rodoviária. No banco, ao seu lado, duas malas grandes, que eu não vi chegarem, assim como ela que eu achava que não estava lá quando eu me sentei. Mas que também não estou certa, porque ela sempre aparece quando eu me distraio.  Eu olhava para ela, quando depois de atender ao celular não a vi mais, as duas malas continuavam nos bancos, mas ela, de novo, não estava mais lá. A ligação não era importante, só durou o tempo de eu perdê-la na rodoviária, não queria embarcar sem saber se ela já tinha ido sem as malas. Olhei em volta e ela estava na lanchonete logo em frente, tomava um refrigerante e comia um pastel. Peguei a minha bolsa e quis ficar perto do único rosto conhecido, antes de viajar. Sinto um desamparo antes de entrar em qualquer ônibus; é como se eu fugisse e esperasse alguém aparecer e me pedir para ficar. Viajar é sempre uma alegria triste, uma melancolia de partida, uma expectativa de novidade. Sou sempre muito perdida em trânsito. Não sei andar com a segurança da mulher a quem persigo na rodoviária.

  Ela não sabe quem eu sou, sento no balcão ao seu lado e peço um pão de queijo, a única coisa que eu sei pedir fora de casa. Ela serve seu copo com refrigerante e pela primeira vez eu escuto sua voz. E ela fala comigo:
- Aceita um copo? Bebe comigo. Eu não consigo tomar um inteiro.
  Eu não disse nada, fiquei olhando para as unhas vermelhas dela, apertando a lata de refrigerante e, finalmente, ouvindo a voz de uma pessoa antiga, que nunca soube de mim. Ela pediu outro copo, encheu de refrigerante laranja e me deu, antes que eu conseguisse articular uma recusa ou agradecimento. Nem sim nem não; terminei o pão de queijo com um refrigerante doce e gelado, curiosa para saber como ela escolhia a cor do esmalte.

  Eu queria conversar, mas ela comia pastel e eu não sabia o que dizer. Quando eu achava que sabia, ela mordia, quando ela não mordia, eu não tinha mais palavras. Quando terminei o refrigerante, ela acabou o pastel, se levantou, eu agradeci pela bebida, ela sorriu:
- Obrigada por compartilhar o açúcar comigo.
   E foi ao caixa, sem pedir direção. A bengala encontrou um declive, ela se desequilibrou, deixou a carteira cair, eu a recolhi do chão e entreguei a ela, então, de novo, ela sumiu. Deixou para trás uma moeda de vinte cinco centavos, caída no chão, que eu só encontrei depois e o meu pão de queijo pago. Ainda a vi seguindo para a área de embarque e um funcionário da rodoviária, levando suas duas malas. A bengala ia na frente dos dois e ela andava mais rápido do que o homem e os outros passageiros.

   Viajamos. Eu não fico fora o tempo que eu gostaria. Prestações de conta, satisfações ao analista, boletos bancários, uma gata faminta e um amor me esperam. Pelo tamanho da sua bagagem, ela sim vai ficar mais tempo noutro lugar, mesmo que tenha para quem voltar aqui. Vou sentir saudade, lembrar da rosa que ela nunca me permitiu roubar, do meu nome no quadro que ela não escreveu com o giz azul e da trança que eu sei que ela saberia fazer, mas nunca tocou no meu cabelo. Nosso passado de ausências, nossos olhares enterrados na escuridão, as unhas vermelhas dela batendo no balcão, um refrigerante alaranjado e a moeda de vinte e cinco centavos que eu guardei na minha bolsa, também farão parte do nosso passado. Estreitamos laços, que talvez um dia ela saiba. 

  A mulher que não me vê, não começa um assunto comigo, não segura no meu braço para atravessar a rua nem pede indicações de um lugar que não existe, tateia um corredor escuro e sempre chega no fim. Já eu, me perco no claro, fico reticente depois de dois passos e volto um. Cada uma com suas falhas, limitações e viagens de ônibus. Cada par de olhos, buscando seu lugar e o que a vida pode entregar ou nos negar repetidamente. 
  Para chegar a lugar nenhum, eu encolho as pernas, deixo a coluna ereta e tiro da bolsa um livro com a perícia de um avaliador de raridades. Não levo muito, não sei o que deixo e volto sempre que começo a gostar de outro lugar, não tenho bengala que me previna das quedas nem passos seguros. Mas o doce do refrigerante me acalma e me faz pensar no quanto estar em trânsito é o melhor lugar para se estar. No escuro ninguém vive, se puder viajar e ter um lugar para voltar.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 22 deste dia de Santa Rita de Maio (tenho causas impossíveis) de 2017

Amanda Amanda

Li seu texto com outros olhos - sim, eu sei, eu até tento, mas - caramba, não consigo fazer uma linearidade numa só direção ou numa só dimensão.

A mulher das rosas - sim, há perfume nelas, é verdade, eu as vi, senti sua textura, seu perfume, a cantarola murmurada pela doadora das rosas no seu aniversário.

Escrever o nome próprio é identificar-se com um mundo totalmente novo - acho que é a partir daí que ficamos precisando de Santa Rita.

Teremos uma semana tensa em Brasília, e por causa disto, dentre outras coisas, penso nas mulheres da Arábia Saudita que ao recusarem fazer café para o marido, são penalizadas com divórcio, sem direitos. Então o que um árabe vê na sua mulher que os golpistas também vêem por aqui?

Bem, a sua protagonista passeia pela cegueira, pareceu-me parcial, da senhora com ares de empatia d'alma. Li uma matéria, na qual não me aprofundei, sobre a questão de sermos além do que pensamos - eu sou o que eu penso; sermos o que vemos, pois o babado novo é de que o universo, nós outros incluidos, somos uma holografia bidimensional, e são nossos olhos que detectam a terceira dimensão. Não entendi nada, mas guardei para ler com mais calma quando a maré baixar. Caso queira também não entender nada, mas ver algo que ainda não viu e ter assuntos esquisitíssimos para a rodada de chopp no São Matheus com quem direito, está aí: - https://journals.aps.org/prl/abstract/10.1103/PhysRevLett.118.041301

Aqui uma melhor interpretação na língua pátria, mais palatável aos nossos olhos, digamos assim: http://nerdices.com.br/42/2017/03/13/nosso-mundo-e-uma-prisao-conceitual-e-so-vemos-relances-da-realidade-diz-cientista/

Foi isto que pensei ao ver com suas palavras aquela mulher com a bengala. Santa Rita, acho que sou causa perdida, mas não desista!

Ela, a mulher da bengala vê um mundo que não posso ver e vice-versa, enfim, boa semana. E vamos lá, que se o meu caminho é de pedras, como posso sonhar?!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 23 de maio de 2017 (Também tenho causas impossíveis e não sei se há santo para elas...as urgências do mundo são maiores que as minhas).

Paulo,
que bom que vem e faz sua leitura não-linear; essas são sempre as melhores! E ainda vem e compartilha; que generosidade!

Então, a semana, o mês o ano em Brasília corre tenso, assustador e numa leitura, ao menos para mim, quase impossível. O que tem sido estes últimos dias? A quem tem servido tantas máscaras ao chão? Não sei, não sei...só desconfio de absolutamente tudo. Em que furacão estamos?

Lerei o texto do link, dei somente uma passada de olhos (naquele que você sugeriu ser mais palatável, é claro! rs) e já achei interessantíssimo, mas está tarde. Lerei com mais atenção depois.

Sim, sua relação entre a mulher da bengala e o mundo que ela não vê, mas eu vejo e aquele eu não vejo e ela vê, tem muitos pontos de contato com o artigo que você me apresentou. Santa Rita não precisará ser solicitada para esta causa, ao menos.

Abraços, ótima semana