sexta-feira, 9 de junho de 2017

Ele dança no escuro e não pisa nos pés do seu par

   Não sei se o salão, para ele, é completamente escuro ou é um clarão irreversível por onde ele se desloca; não sei se ouve sussurros quando gritam e se o mundo dele é feito de silêncios intermitentes e profundos. Não sei como a música atravessa o seu corpo, surpreendentemente, flexível. Não sei se ele aprendeu a entrega aos poucos ou se resistiu a aprender o seu contrário. Deve ter cerca de cinquenta anos, uma mãe protetora e uma essência dançante. A primeira vez que o vi, enxerguei a sua mãe primeiro, a primeira vez que ouvi sobre ele era a sua baixa audição e a sua deficiência visual. Portanto, não era ele, era sobre o que o acompanhava.
   Eu vi a mãe, antes de tê-lo visto, porque é ela quem, na maioria das vezes, fala por ele. É uma mulher pequeníssima de olhos atentos e exercício duplo: vê o mundo para ela e o filho, fala por ela e o escuta, para só então, falar por ele; o que ela ouve, imediatamente, traduz para o filho, em um nível sonoro que sabe que ele é capaz de captar. Ela quase não solta o braço dele e ele a procura, quando ela se afasta sem avisar. É uma mulher idosa com uma eficiência emocionante, porque não sabe sentir sozinha, absolutamente tudo ela compartilha com o homem que tem o dobro da sua massa corporal e o nome de um símbolo de grandiosidade do império romano. Ela tem os olhos largos para o futuro do seu menino, que mãe não tem?

  Mas depois dela e, também, depois de saber da escuridão e da lonjura das vozes no mundo em que ele nasceu, nós finalmente fomos apresentados. Eu não disse o meu nome, ele não perguntou o que eu fazia, nem quanto eu ganhava, se morava perto ou longe, não olhou uma só vez para os meus pés, mas colocou uma das mãos na minha cintura e a outra mão, delicadamente se encaixou com a minha, esperou minha outra mão pousar sobre o seu ombro e, paciente, aguardou que eu o conduzisse. Éramos um par, eu via. Éramos uma dupla na dança, eles diziam e, de nós dois, só eu ouvia. Mas parece que ele entendeu antes, porque confiou que eu o levaria para o lado certo, sem nem me perguntar para que lado era.

  Ele dança, lindamente, ele se entrega ao ritmo que eu estabeleço; se sou lenta ele também é, se amplio as passadas, ele logo compreende as distâncias, se devemos deslizar por um cometa, ele é intergalático, se preciso ser dura, ele, antes de mim, é uma viga de concreto, se devemos voar, ele circula por entre nuvens. Eu escuto a música, vejo os outros pares, olho nossos corpos no espelho, desvio do ventilador, me atento sobre as marcações com fita no chão e tento segui-las, enquanto ele dança comigo. Pleno. Sagaz. Vivo em expressão e individualidade, é um homem do império romano que se deixa conduzir. Não invadimos nada, não propagamos nossa cultura, não originamos nenhuma civilização;  nas tardes de quinta, só dançamos. Eu, num salão improvisado em um refeitório barulhento, repleto de desconhecidos e ele, num escuro, que não teme e que é bastante frequentado.

  Nas primeiras quintas-feiras a mãe do meu par nos acompanhou, ao longe, por quase todo o tempo, imagino que ela esteja  sempre disposta não só a protegê-lo, mas explicar o mundo para ele e também explicá-lo ao mundo. Bastava uma mudança de passo e ela já ficava atenta, disponível para ajudar o filho a encontrar o ritmo, se levantava e parecia estar pronta para interferir na nossa parceria, só se sentava quando percebia que nos entendíamos. Mas hoje ela teve a mesma confiança que ele tem em me deixar conduzi-lo. Hoje dançamos sozinhos, sem a plateia ansiosa da mulher que o conduz pela vida.

  Eu nunca gostei tanto de dançar em par, como eu tenho gostado nos últimos meses,  sem ter que ser vista ou ouvida. Dançamos com o que temos, somos bailarinos com as nossas precariedades, com as ausências e as dificuldades, mas também dançamos com aquilo que não esperam de nós. Ele desconhece o meu rosto, ele só ouve um sinal da minha voz quando eu grito, ninguém disse de quem é a mão que ele segura tão delicadamente e a cintura que ele apoia a outra mão, mas ele me segue no salão, sem ressalvas, sem duvidar ou desistir, sem nunca, por nenhuma vez, pisar no meu pé. Ninguém nunca me viu ou me compreendeu tão bem quanto o meu parceiro das quintas.

  Uma pilastra no nosso caminho, eu me distraio, por um segundo esqueço que não sou só e  ele esbarra bruscamente no que eu não soube desviá-lo. Eu peço desculpas, me envergonho, me sinto uma péssima parceira e ele sorri e me perdoa das minhas faltas. Sou eu quem não enxerga, é o meu ouvido que bloqueia as vozes mais importantes.  Ele não ouve a música, não enxerga o passo, mas ele confia que eu posso atravessá-lo até o outro lado do salão. Somos um par que dança, cada qual, nos seus escuros, mas que cada passo nosso ilumina uma possibilidade de rota e  o peso da nossa cegueira é, finalmente, partilhada. Ele me ensina a enxergar o que é importante, silencia minha multidão, faz o meu corpo sentir o ritmo que, noutras vezes, ele é indiferente e eu só o levo pelo salão. Ele dança no escuro e nunca pisa nos meus pés. Eu danço no escuro e aprendo que não ver é só uma questão de lugar.

  No final da música, a mãe do meu par nos espera na porta do refeitório-salão e me agradece por tê-lo conduzido. Logo ela, que nunca deve tê-lo deixado se chocar com uma pilastra. Logo eu, que ainda me confundo com as instruções que ouço e com os lados que os meus olhos dizem que veem. Ele solta o meu braço e se agarra ao dela. Logo ele, que me compreende tão profundamente. Logo todos nós,  que não sabemos de ninguém até conhecermos, de fato, a pessoa e não o que a acompanha.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, tarde azul e folgada desta sexta-feira pós-Corpus Christi 16062017

Amanda Machado
Surpreendente bailarina da escrita
Boa tarde

Mais uma carta e ainda não pensei bem no que escrever, mas pensei no contexto. Algo sairá sem revisão, então assim devem ser as cartas - sou do tempo das cartas.

Duas coisas nunca aprendi - dançar e nadar. Não sei fazê-los e não foi por falta de tentativas. Só muito tempo depois aprendi com uma pedagoga, de inesquecível talento narrativo, explicativo e passional, que isto se devia à inteligência emocional - aquilo valeu por dezenas de sessões de análise que não fiz - aliás, fiz algumas mas abandonei o processo em meio às turbulências da vida.

Gostei do que não li - quem conduz quem. Quando somos conduzidos e quando conduzimos, qual dos dois requer maior grau de sobriedade, solidariedade e sobretudo sinceridade. Conduzir ou ser conduzido não requer olhos e ouvidos em plena função - requer confiança - um se deixando tocar e se levar pela mão de outrem - a mulher, com sua cintura ao alcance do desejo e sua mão ao alcance das estrelas por que confiou e transmitiu confiança - onde li isto? aí em cima, no texto.

Dançaram como se dança a vida, ora valsa, ora samba, mas por favor, sem funk. Então é isto - obrigado pelo prazer da leitura.

Paulo


Amanda Machado disse...

Minas Gerais, sábado gelado do dia 17 de junho, de 2017 (de um pós-feriado estranho)

Caro Paulo
- escritor das profundas e agradáveis missivas - possivelmente a dificuldade está nos dois papéis, condutor e conduzido são duas instâncias que requisitam confiança e entrega, numa proporção que só é descoberta durante a ação ou nunca é.

Nadar e dançar acho que é um aprendizado da vida toda, embora nem sempre nos admitimos dançarinos habilidosos ou nadadores...em alguma medida estamos sempre tentando encontrar o ritmo do passo e a outra margem ou borda.

Obrigada pela visita e carta (sou do tempo delas também)
Abraços,
Amanda