quarta-feira, 21 de junho de 2017

Sacola de ausências

   Cinco da manhã de segunda-feira, o cabelo molhado carimba gotas no sofá bege, uma luz  acesa no final do corredor e o dia cinza claro, apontando no telhado da varanda vizinha,  a casa volta a ser silenciosa de gente de novo, uma só pessoa não é capaz de ocupar os silêncios de um apartamento, mesmo quando ele é muito pequeno. Poderia dormir mais duas horas, mas já está desperta demais para voltar à cama, aperta a caneca com a estampa de uma árvore de natal, com as duas mãos, e toma o primeiro gole de café do dia. É junho lá fora, mas nas mãos é dezembro, dia 26. Daqui a pouco os cães voltam a latir, os portões voltam a ser abertos, os carros saem das garagens e do feriado só algumas fotos e vozes distantes. Dezembro acabará antes do cabelo estar seco de novo.
  Tem duas horas para dormir, mas prefere sonhar no sofá com o café na caneca de natal, sonha com o tempo em que, na rua, todos os cachorros tinham dono e ela era a dona deles. Quando amarrava o casaco na cintura, porque só sentia frio depois do banho e descia a rua, saltando as linhas no cimento.

  Quando foi que começou a não se importar com as linhas? Quando foi que passou a andar como os outros? Nós virávamos a esquina, de olhos fechados ou de costas, sem termos medo de nos chocarmos com algum carro que viesse do outro lado, hoje não atravessamos o corredor sem parar antes de cada porta, para não trombarmos com ninguém. Não é cuidado, é medo. Não era coragem, era entrega. Comíamos fruta com sal, jogávamos as cascas no quintal e agora não usamos mais saleiros e as cascas vão para o plástico azul ou preto. Tínhamos piolhos, carrapatos e um curativo, atadura ou gesso, hoje só band-aids, depois dos sapatos novos.
  Esfrega as pontas dos cabelos para pararem de pingar, a madrugada gelada faz lembrar tanta coisa, por que no inverno as lembranças chegam mais quentes? Eles foram embora e deixaram a roupa de cama esticada, como se voltassem à noite. Não voltam não. As camas lisas que uma pessoa sozinha não pode amassar, mesmo que os lençóis sejam muito finos.

  As madrugadas de despedidas são tristes, mas são menos longas que as das esperas. Ir dura menos tempo do que chegar. Logo o relógio marcará sete horas, mas se estivesse esperando por alguma chegada, o café da garrafa acabaria,  o cabelo ficaria seco e grisalho, as correspondências se acumulariam na caixa, o inverno chegaria e iria embora e a espera ainda estaria instalada no sofá bege, dividindo o cobertor vinho com ela. Eles chegarão em casa, quando no apartamento, do qual partiram, já não tiver mais nenhum vestígio deles; é fácil apagar marcas visíveis, as manchas da parede, os fios de cabelo no ralo, o cheiro do perfume deles: vassoura, pano molhado, detergente neutro e janelas bem abertas. Mas as marcas escondidas nunca se revelam para uma só pessoa, mesmo que sejam muitas, uma pessoa sozinha não pode enxergar atrás de todos os móveis, suspeita da marca, entende a marca, mas não a descobre.

  Vai servir mais café e pisa em um milho que sobrou da pipoca de domingo à noite. Toma o café e se lembra da sacola com restos de milho e algumas pipocas em que o homem guardava suas roupas. Era no apartamento da frente, do outro lado da cidade, ia para lá para brincar com a filha da moradora nova, nem se lembra do nome delas, nem do número do apartamento, mas a sacola do homem sempre chega. Ele era tio da menina, sempre o via estacionar, no final da tarde, o carrinho de madeira com a sucata que recolhia durante o dia, em frente ao prédio, mas nunca o via no apartamento delas. Mas num dia ele esteve lá para buscar alguma roupa e a mãe e a avó da vizinha colocaram as peças numa sacola branca fina, quase transparente e, no fundo, os restos de pipoca. A menina não falou com o tio, ele não tomou café ou comeu bolo, como os  tios da visitante faziam quando iam na casa dela. Só buscou as roupas, trocaram algumas palavras e ele foi embora. Peças de roupas limpas numa sacola plástica com pipocas foi tudo o que permitiram a ele naquele dia, naquela casa. Viu o homem descer os primeiros degraus da escada de cabeça baixa, antes de fecharem a porta. Pela fresta, despediu-se do homem sem nunca mais poder se esquecer dele. Uma imagem não partilhada perseguirá uma pessoa até ela saber o que fazer com ela.

  Seis da manhã de segunda-feira, eles partiram como das outras vezes, ela tomou banho e está sentada na sala, bebendo mais uma xícara de café. Foram embora e ela não sabe se levaram mais do que sacolas com pipocas no fundo, acha que desceram felizes as escadas, deu um abraço em cada um e pediu que levassem-na, nas sacolas deles. Por isso esse cansaço, essa perda de energia temporária, deu o que tinha de mais profundo e duradouro, sempre dá. 

  O que damos ou recebemos nas partidas e chegadas, ultrapassam instantes, se acomodam na alma ou vão dobradas para o lixo. A espera de alguém é longa e demora muito mais do que gostaríamos, as partidas são curtas, dolorosas e, por vezes, definitivas; mesmo que voltem serão outros e ela também. E é por isso que não pode ser um deserto, mãos vazias e sacolas balançando de ausências. É preciso dizer adeus com vontade de ir junto, mas ficar porque as plantas do apartamento não sobreviveriam sozinhas.

   Na sacola de plástico com alguns grãos de milho, que não chegaram a ser pipoca, as ausências que ele arrastava no seu carrinho com papelão pela cidade; acostumado a não ter. Ela nunca foi capaz de esquecer aquela tristeza, que era dele e, nalguma instância, é dela também. Ela cresceu, são mais de vinte anos e ainda busca o rosto dele pela cidade. Terá ele se recuperado daquele nada que lhe deram? Terá ela mesma superado a culpa por não ter tirado os milhos do fundo da sua sacola? Todos que vão embora levam mesmo o tesouro que ela oferece ou o abandonam antes de virarem a esquina?
   Quinze minutos para as sete da manhã. Sonhou, enquanto terminava as três xícaras de café, com aquele tempo em que todas as gentes tinham um dono e ela era a única não domesticada, o tempo em  que os passos de olhos fechados ou de costas levavam para mais longe, que limão com sal era azedo sem doer, que as cascas não eram lixo e ter piolhos e um atadura no braço era motivo para não ir à escola e ficar olhando a mãe costurar.
  Lavou a xícara com a estampa de natal, o feriado acabou, eles voltarão no próximo e encherão a sacola dela e ela a deles com o que de mais humano puder encontrar. Nunca mais viu o homem, mas honra a sua sacola de ausências em cada partida; dos outros ou dela. Ninguém partirá sem levar muito, ninguém irá embora sem as luzes estarem todas acesas.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 02 de Julho de 2017

Cartas para Amanda

Deve ser a de número ... vou chutar aí, deve ser tipo assim umas 50 cartas, mas devo numerar? Acho que não. Cartas são distintas, só a destinatária é fixa.

Escrever é uma arte, por que seus textos são sempre limpos, claros, e diferentes, não há reprise. Tenho que recorrer a uma frase batidíssima do Leon Tolstoi - Todas as famílias felizes são parecidas; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. Imagina isto falado em russo ...

Porém, Tolstoi aqui, onde os textos traduzem estas dores diversificadas, cada uma a sua maneira. Bem, pelo conjunto, a carta está bem na fita, e poderá ser rodada no mimeógrafo.

Na verdade na verdade a dor da gente não é uma pós-verdade. Lembrei agora de um filme (melhor não aprofundar pois sou leigo e você cinéfila profissional) com a Keira Knightey (suspiros) - "Um método perigoso"

Num dos muitos diálogos, ela cita Lérmontov, um poeta do romantismo russo. Não conhecia, mas aguçou minha curiosidade - porquê ela citou especificamente este poeta? Achei uma citação interessante que se encaixa no processo Jung/Freud e a linda Keira:

Lérmontov escreveu um poema chamado Demônio:

O poema “Demônio” é baseado no mito bíblico sobre o anjo caído que se rebelou contra Deus, mas Mikhail Lérmontov decidiu criar a história do seu jeito, ao descrever o amor do demônio pela bela terrena Tamara, que causou sua morte.
Fonte: https://gazetarussa.com.br/arte/2014/10/25/os_13_demonios_de_lermontov_27991

Uma simples citação resume um quadro complexo.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 03 de julho de 2017

Caro Paulo - o redator das cartas que explicam os textos daqui com muito mais talento e clareza. (Eu só complico. Acho que venho mais para isso. rs)

Cinquenta cartas!!! O número é impressionante, mas os conteúdos são ainda mais expressivos. Que bom que veio e que ainda não se cansou de escrever essas missivas memoráveis. Porque imagino o tempo investido, as urgências todas com as quais precisa se acertar, antes de puxar a cadeira, ler o que aqui eu trago e ainda se empenhar em tecer suas generosas considerações (tomo-as como partilhas mesmo!). Guardo todas! E recebo cada referência como um regalo (poemas,filmes, músicas, ciências, biografias...), tudo chega na hora certa, com o máximo de precisão e as entregas são sempre uma alegria. Muito melhor que Os Correios (que não me ouçam os sedentos de privatizações!).

Sim, me lembro do filme da Keira (atriz que gosto muitíssimo), mas não me lembrava do diálogo, tampouco do poeta. Mas fui lá no link e depois procurei o poema traduzido. E como o poema é poderoso nesse contexto específico! Muito bom. O demônio perdido de amor é dramático, perturbador...
Obrigada por mais essa carta, uma ótima semana
Amanda