terça-feira, 6 de junho de 2017

Sempre é tempo de voltar e pegar o que ficou para trás

  Estivemos distantes. Por um tempo que não sei precisar, não nos vimos. Eu não notei a última vez
que a vi, não percebi se quando ela se afastou sorria, chorava ou se tinha uma expressão desesperada, perdida, se calma ou angustiada. Nos afastamos por falta de delicadeza com o tempo e do costume de tê-la sempre muito próxima. As primeiras pessoas de quem descuidamos são as mais antigas, as mais caras, as nossas únicas reais companhias, como se o zelo só fosse permitido ao novo. Não me perdoava, até hoje pela manhã,  por não tê-la visto partir. É certo que duas pessoas se afastem, certo também que não queiram mais dividir uma bacia de pipoca, uma sobremesa no restaurante favorito, não gostem mais de caminhar juntas nas manhãs de domingo. Não é estranho o estremecimento, o desinteresse eventual, o desejo de outras vozes, rostos não habituais e novos gostos. Quando encaramos o diferente podemos nós, também, sermos outros. Um novo encontro possibilita o nascimento, em nós, a partir de um outro olho, de uma pessoa diferente para um novo mundo.

  Mas não ter ritualizado uma despedida, não ter escrito uma carta ou ter lhe mentido num bilhete em cima do criado-mudo:
- Volto já.
Pareceu-me ser demasiado frio, embrutecido e desumano.
- Então sou esta, a que não se importa?
  Importou-me muito não vê-la, não que eu sentisse sua falta cotidianamente, porque fui me preenchendo de novas coisas, de um mundo sem memórias, fui engolindo possibilidades de futuro, mas doeu-me  não saber em que parte da cidade eu havia abandonado-a. Se num clube, numa igreja, numa praça central, numa feira, num edifício, no consultório de um especialista ou num parque distante. Incomodou-me não saber como ela agora vivia apartada de quem sempre foi muito próxima a ela. Invejei possíveis novas companhias, engoli segredos que só confidenciaria a ela, fui multiplicando uma vida para eu mesma gastar, sem partilha, num tempo que eu nem sei se seria meu. E se ela já compartilhasse suas memórias com outro alguém que não eu? Tive pena de mim que não a tinha, tive pena dela de não ter me despedido.

  Sobrevivi, por meses, sem nenhuma notícia sua e, também, ninguém me perguntava por ela. Ou não sentiram a sua falta ou quiseram ser discretos. Os dias não pareceram diferentes, eu acordava, corria, ia trabalhar, sorria, ia para cama já bem tarde, sonhava algumas noites, como sempre foi. E mesmo que ela não estivesse, eu ainda me maquiava no espelho do banheiro, sozinha, como nunca achei que pudesse ser. Era uma vida sem o peso das respostas inventadas, das dúvidas divididas, do choro no cinema, parei até de derramar lágrimas no último banco da penúltima fileira, gastei menos horas repensando a vida, investia tempo na ilusão de uma nova. Mas não saber como ela estava, às vezes, fazia o meu coração latejar de dúvida e desgosto nas noites de domingo.
- Fiz bem em perdê-la?

  Passei a acordar ainda mais cedo e a testar caminhos novos, mais distantes, quem sabe eu a visse de longe, soubesse de sua nova vida sem me anunciar ou propor reconciliação? Quem sabe eu pudesse voltar a frequentá-la sem a dureza do compromisso? Talvez pudéssemos só sentar no gramado, sábado à tarde, lermos algumas poesias uma para outra  e nos afastarmos de novo. Quem sabe eu não pudesse pedir-lhe desculpas, dizer que estive sem tempo e delicadeza, mas que ela era muito importante para mim?
  Os alunos por trás das grades das escolas dos bairros, os times de futebol de várzea da cidade, os grupos de capoeira, a tropa da polícia de farda passada, os bêbados alegres de álcool e de vida que se equilibram na calçada da rua de baixo, o grupo cristão  que distribui o prato de sopa aos moradores de teto estrelado e luminária amarela de medo, as meninas que tomam cerveja depois da aula e só voltam para casa de táxi em grupos, ninguém soube me dizer onde ela estava, se viram, não me disseram. Tentei me acostumar com a possibilidade de tê-la perdido para sempre.

- E se a internaram ou prenderam? Como ela escaparia dos cadeados?
  Não me perdoaria se ela tivesse sido agredida, violentada ou humilhada. Porque a amo e amar é também se comprometer em ser o escudo do outro, quando as balas ameaçam a queimar. Eu não suportaria vê-la sofrer, talvez por isso o afastamento.
  Mas então, ontem, recebi um anúncio, um sinal sutil de esperança chegou numa folha de papel ofício. Um símbolo que eu nunca tinha visto antes, mas que eu sabia exatamente o que significava. Um adinkra africano, a silhueta de uma ave com o pescoço virado, anunciava: "Sempre é tempo de voltar e buscar o que ficou para trás". Não era a cidade que a escondia, era eu que não podia enxergá-la. Não foi o voo que atrasou, não foi o táxi que ficou parado no trânsito mais tempo do que o seu aplicativo calculava, todas as horas em que eu estive no aeroporto, esperando por ela, ela estava comigo. Não perdi a chave, o jeito de abrir a porta, nem o encaixe no buraco da fechadura, não perdi a vontade de entrar, eu só não olhava o que eu tenho e negava o que eu já sou

   Hoje, pela manhã, reencontrei-a no banheiro de casa, tinha uma espinha no queixo, um olhar  de saudade, ela tem esses olhos caídos que eu nunca soube dizer se eram de melancolia ou desamparo, mas tinha dentes de alegria fresca. Não me cobrou nada, não perguntou nem explicou por onde esteve, que não a via, e toda a falta que eu neguei nesses últimos meses escorreram pelo meu rosto. Chorei o que não chorava há meses, nessas sessões de cinema que tenho ido sem ela. Ela me consolou só com a sua volta, não me disse nada que eu quisesse ou não ouvir, mas correu comigo, tomamos café na volta, tomamos banho, ela fez a minha maquiagem e eu prometi que não a abandonaria mais. No tempo que estivemos distantes, envelhecemos, acho, mas não nos perdemos no tempo.

  Hoje, pela manhã, eu me vi no espelho do banheiro e fiquei feliz com o reencontro. Passei uma madrugada inteira,  buscando palavras que me reconciliasse com quem eu não soube ter paciência, delicadeza e espera. Mas fui perdoada sem palavra alguma, mesmo que eu guardasse dezenas delas na bolsa. 
  A corrente fina do tempo não escorre no fio grisalho, nem na flexibilidade cada vez mais difícil, nem nas oportunidades que não soubemos aproveitar. Sabemos que o tempo passou pelas coisas que tentamos esquecer e nunca conseguimos. Ela voltou porque somos o que não podemos esquecer nunca. Eu não sou a mesma para esses olhos antigos, todos os dias. Sou inédita porque os meus olhos também são, depois de sonharem uma noite inteira. No adinkra africano, o pescoço da ave, virado para trás, o seu movimento para apanhar um grão perdido; sempre há tempo. No espelho do banheiro, meu pescoço virado para dentro, o movimento para eu não me perder mais de mim, ainda houve tempo.






3 comentários:

Sofia de Buteco disse...

Emocionante 😢

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 12 de junho de 2017

Amanda Amanda
A moça que dilui sonhos em contos etéreos.

Em que ponto perdemos o que há de melhor dentro de nós? Em qual baile, em qual esquina, em qual bar? Em qual viagem? Onde ficou aquele sorriso que um dia foi tão importante? Aquele beijo apaixonado? Para onde foram todas estas memórias que são tão caras e tão frágeis.

Como se perde um sonho? Não sei - coisas doidas acontecem. Um dia, há muitos muitos anos atrás, uns 40 anos mais ou menos. Estou andando pela Avenida Afonso Pena, em BH, indo para o ponto de ônibus. Vi uma moça linda que me viu. Estava frio, devia ser uma época como esta agora. Fomos nos aproximando, nos aproximando e nos demos um beijo escandalosamente apaixonante e inesquecível. Eu esqueci do rosto dela, mas do beijo até hoje guardo saudades, onde foi parar aquele momento? Nunca contei isto - rindo sozinho.

E quando a pessoa se encontrar com seus sonhos, o que uma dirá para outra? "A corrente fina do tempo não escorre no fio grisalho, nem na flexibilidade cada vez mais difícil, nem nas oportunidades que não soubemos aproveitar. Sabemos que o tempo passou pelas coisas que tentamos esquecer e nunca conseguimos."

Fiz este texto ouvindo incessantemente Brenda Lee cantando Fly me to the moon - foi o catalizador destas memórias.

Boa semana

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 13 de junho de 2017

Caro Paulo
homem das boas reflexões e trilha sonora impecável

Que ótima história essa sua, lembra-se do beijo, mas não do rosto. Acho que isso é recorrente nas nossas memórias, às vezes, pensamos sentir falta de alguém ou algum lugar e a saudade é a mais difícil, porque é daquilo que éramos ou sentimos naquele instante com a pessoa ou naquele lugar. E voltar a uma emoção específica só é possível nestes sonhos que temos, dormindo ou não.

PS: Ouvi Brenda também e voei.
Abraços, Ótima semana!