sábado, 1 de julho de 2017

O nosso cronista cubano

  Todo primeiro dia do mês eu o lia. Todo primeiro dia do mês eu rasgava o plástico, com uma etiqueta cujo nome não era o meu. Todo dia primeiro eu abria a revista e o encontro se estabelecia de novo. O cronista e a sua sedução cubana; o cronista de relacionamentos e a sabedoria de um tio que citava Sêneca,  o cronista do meu primeiro dia do mês numa revista que não era para mim. Alguns anos de encontros e a revista não chegava mais ao meu endereço. Algumas dezenas de textos e eu era a leitora discordante do cronista que eu amei. O escritor cubano de uma revista masculina não era mesmo cubano, soube muitos anos depois, mas eu continuava sua amante, ainda que o escritor fosse personagem.

  Soube, ontem, que ele morreu há dois dias - o criador da personagem, o escritor das crônicas que eu lia no começo de cada mês -  e nesse mesmo segundo eu soube o quanto ele tinha sido importante para mim. A morte tem essa redenção final: faz a leitura do inventário daquilo que herdamos. O cronista cubano que não me deixou um carro, uma guitarra nem uma caixa de charutos ou uma foto do Fidel. Um desaparecido cronista cubano que deixou a minha memória repleta do que ele escrevia e dos encontros que eu não sabia, mas faziam parte daquilo que é efêmero demais para nos darmos conta, antes que se torne fumaça. Chorei como se tivesse perdido um amigo, chorei pela partida de alguém a quem não conheci de verdade e cuja identidade eu soube tanto tempo depois. Por isso, estranhei o choro. A blusa molhada de lágrimas e eu não compreendendo meu próprio lamento. Como me consolar, então? De quê?

  Mais tarde, depois do rosto e da camiseta secos, eu me lembrei de que a tristeza era outra, a perda não era essa sem volta, mas a morte do cronista só a trazia mais para perto. Chorei, porque o cronista cubano foi uma ligação com alguém com quem compartilhei os textos dele. Éramos os dois no mundo a saber do escritor cubano, que eu nem sei se ele soube ser uma personagem, talvez soubesse e quis me proteger da verdade. Chorei, porque a morte do nosso cronista cubano abriu mais uma fresta na nossa história, mais um passo em direção oposta; eu e o destinatário da revista que eu violava todos os meses, com a sua permissão, não lemos mais um mesmo texto a cada primeiro dia do mês. Morreu o cronista e mais uma referência nossa se apagou, antes de acabarmos de descer todas as escadas.

   Eu chorei por duas fatalidades, pela morte de um desconhecido e pelo afastamento de alguém a quem eu não sei esquecer, só amar.

   Por quantos edifícios não lutamos para que se mantenham de pé só pelas histórias que, um dia, moraram lá? Mesmo que todos tenham morrido, que as TVs não tenham mais tubos grandes, que nos varais ninguém estenda mais lençóis e nenhum vizinho saiba o nome dos nossos pais, ainda assim queremos que o edifício não seja demolido. Queremos passar em frente, saber que está na rua onde moraram os nossos sonhos e, mesmo que jamais voltemos a subir as suas escadas, vamos dormir e sonhar com uma voz antiga chamando-nos pelo nome, com uma mão precisa nos conduzindo pelo corredor escuro. Então, teremos uma construção para guardar o que não usamos mais durante o dia, mas que sempre voltam a nos caber quando faz frio, chove ou quando alguém de quem gostamos muito não volta.

  A despedida do nosso cronista cubano é o prédio demolido por tratores. Eu choro na calçada, assistindo o inevitável, seguro uma foto antiga da sua fachada e só me aproximo depois que a poeira rosa se assenta. Ando por entre os entulhos, encontro um pedaço da parede verde que limitava nossa varanda, escorrego em um pedaço de azulejo de um apartamento que eu nunca cheguei a entrar, tropeço em uma viga que sustentava nossas existências, me abaixo e seguro um pedaço do concreto que nunca cairia, se não fosse a especulação imobiliária. Nem as construções muito firmes duram no tempo, se a quiserem derrubar; nenhuma permanência que evite o nosso choro de abandono.

  O cronista cubano morreu nos últimos dias de junho, soube ontem. Chorei. Abriu-se mais um espaço entre as nossas existências, mais uma ponte quebrada que não voltamos para consertar. Será que um dia ainda teremos alguma chance? O nosso cronista cubano tragou o seu último charuto e eu me abracei por falta de gente a quem contar a minha perda. Eu comi pizza ontem, depois da prova. Que estranho viver só para mim de novo, que estranho não estar mais num filme com espectadores entediados nas cadeiras de uma sala escura.

  No primeiro dia do mês, nós nunca mais lemos o Hernandez. No início de cada mês nós nunca mais nos ligamos e à Cuba eu só tenho muita vontade de ir. Mais um quarto demolido na nossa construção. Ao nosso cronista cubano minha saudação e agradecimento; e você  nem soube que eu chorei ontem, antes da pizza. É estranho não ter a quem contar que o cronista cubano partiu. É estranho não ter um edifício inteiro para onde voltar. No primeiro dia do mês, nós nunca mais lemos o cronista cubano, que outros dois me leiam no primeiro dia deste mês.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 19 de Julho de 2017

Amanda Machado
Bem aventurada em sua busca pela felicidade

"Que outros dois me leiam ..." assim termina o conto e não a história. Para a cronista, a lenda cubana e os textos incríveis, lembrei de uma "oração" que li há alguns anos na rede.
A "oração" ou o "sermão da felicidade" (eu que intitulei assim) abaixo é da Helainy Andrade -sic- uma psicanalista de Varginha-MG e pesquisadora na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP , que não conheço, não sei sequer sua aparência, sei nada dela, mas eventualmente leio algo que escreve por que ela escreve com a alma. Achei que encaixava como um comentário para este texto seu:

Bem-aventurados os que conseguem não ser normais e se destacar.
Bem-aventurados os que continuam a falar a partir do desejo, depois de esgotada a queixa.
Bem-aventurados os que têm ideais, mas não o levam tão a sério.
Bem-aventurados os que suportam espaços vazios, silêncios e ouvir música clássica, sem enlouquecer.
Bem-aventurados os que saem da culpa e entram na responsabilidade do bem-dizer.
Bem-aventurados os que guiam sua ação por um cálculo coletivo, ou dos pequenos outros e não mais pelo reconhecimento do Outro.
Bem-aventurados os que suportam o encontro, a surpresa, o acaso.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 19 de julho de 2017

Caro Paulo,
lindo texto, generosa partilha. Procurei o trecho e o encontrei no artigo completo, interessantíssimo - como tudo que invariavelmente me presenteia.
Obrigada pelo texto, pela nova autora apresentada, pela sua leitura e presença.
Abraços,
Amanda