quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Tem homens que nunca escrevem cartões

  Tem homens que correm de mãos dadas com suas mulheres até o ônibus e não sobem. Correm pela avenida às seis da tarde, cortando os carros, ultrapassando outros pedestres, desafiando as outras pressas, mas as mãos não se soltam. Uma ambulância em alta velocidade atravessa a cidade, mas não é mais urgente que o casal. Um carro da polícia ultrapassa semáforos, mas não é mais eficiente que aqueles dois. De longe, esses homens fazem sinal para o motorista não partir, mas não sobem quando chegam, soltam as mãos das suas mulheres e ficam no ponto de ônibus, assistindo-as partirem. Partilham de uma corrida, os homens e as mulheres, para só um dos dois embarcar. Eles sempre souberam que só ela ia, mas não largaram as mãos até chegar a hora. Nunca falam de amor, esses homens.

  Tem homens que ao final de um filme, no cinema, se levantam sutilmente das suas poltronas, no escuro ainda, e tomam suas mulheres nos braços para uma dança. Na última música, enquanto sobem os créditos finais, um par de namorados dança, no escuro, no corredor da sala de cinema. Ninguém pode ver, mas eles fazem a coreografia que, mesmo depois de muito ensaio, continua inédita a cada noite. As luzes se acendem, o homem de cabelos brancos ainda está enlaçado na cintura da sua escolha e a música para eles continua.
  É sexta-feira, faz menos frio que a semana passada, mas o cinema não está cheio; a dança do casal é a melhor parte da última sessão. O filme não acabou depois do fim. Esses homens não sussurram amor-palavra.

  Tem homens que não sabem comprar abacates - só aprendem depois dos sessenta e cinco, com uma desconhecida, no supermercado:
- Tem que balançar, se o caroço se mexer, é porque já está no ponto de maduro.
   Mas eles vão sempre à feira; todas as quartas e não deixam de tentar comprar o abacate no tempo. Esses homens que já aprenderam a escolher abacaxis e ervilhas, que levam sacolas de pano nos seus carrinhos de feira, que cumprimentam todos os feirantes, colocam as caixas de ovos, seguras por um elástico azul no compartimento de cima, experimentam gomos de laranja e pedaços de rapadura, também não negociam o verbo amar.

  Tem homens que choram ao assistirem suas mulheres parirem, não porque se tornaram pais ou porque seu filho é quente e macio como imaginaram, mas porque sabem que nunca poderão dar a elas ou ao filho, a felicidade imensa que natureza e destino arrastam para dentro de uma sala iluminada de azulejos brancos. Ele é a testemunha privilegiada de um milagre, cuja memória nunca se fartará em recuperar.
  Esses homens chegam atrasados aos almoços, confundem datas de aniversário de namoro, esquecem, um dia, os filhos do meio no supermercado e voltam desesperados de pavor e culpa, os encontram, compram sorvetes e torcem para não terem nenhum trauma, seus filhos do meio. Esses homens não cantam, não tocam, não declamam amor.

  Tem homens que misturam banana com tomate, para suas mulheres de oitenta anos com cãibras comerem entre o café da manhã e almoço.
- O médico disse que banana e tomate são bons para não ter cãibra.
  E essas mulheres de oitenta anos, plenas das suas faculdades mentais e gustativas, comem bananas amassadas com tomates, porque sabem que é o melhor que os seus homens sem leitura de romances, nem poesias, nem revistas de saúde podem fazer para tentar prolongar suas vidas sem cãibras. Esses homens que vão aos médicos com suas companheiras, aplicam injeções, preparam nebulizações e choram desesperados ao lado de um corpo esfriando de despedida, nunca falam de amor, mas conhecem saudade.   

  Tem homens que vão à escola depois dos trinta para aprenderem a ler e a escrever e pedem para a professora novata escrever um nome no quadro:
- O seu?
  E ele diz que não, que o interesse primeiro é outro.
- Escreve o nome da minha mulher? Porque de falar é muito bonito, quero ver de escrever mesmo.
  Eles também não pedem que a professora escreva cartas de amor ou declarações, quase sempre é um aviso, um recado, a leitura de uma notificação da prefeitura ou de alguma instituição financeira. Esses homens também não soletram o amor, mas descobrem os nomes das mulheres, antes dos seus próprios.

  Tem homens que  vão embora se não veem mais suas mulheres felizes, se não sabem mais encontrar os olhos delas, se as mãos se cansam de estarem dadas, mas moles de costume. Tem outros que nunca vão, porque suas mulheres não perdem os seus olhos. E nenhum deles escreve um cartão com o amor-signo sublinhado ou pintado de vermelho. Só vão ou não, sem bilhete, só pela vontade de não verem suas mulheres se liquefazendo de não poderem amar com liberdade.
  Tem homens que dançam no cinema com suas mulheres, na sexta, à noite, na última sessão do filme nacional e falam algo nos ouvidos delas; acho que não falam de amor-estereótipo. Com esses homens, sem a palavra amor, eu dançaria, correria, daria a luz, viveria até os oitenta e soltaria a mão, com delicadeza, se assim doesse menos.



4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 03 deste estranho setembro de 2017

Amanda,

Afinal, o querem as mulheres? Querem ser amandas.

É isto aí!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 03 de setembro deste estranho 2017

Querido Paulo,
As mulheres (no plural) eu não sei, nunca faria uma aposta coletiva para os desejos delas, porque são múltiplos, cheios de ecos, raízes e asas...
Abraços,
Uma semana feliz, mesmo nesse desencontrado ano

Paulo Abreu disse...

Também não sei, e claro, viva a diversidade e as adversidades, mas porém todavia contudo aqui não é território neutro, há quem manda.

Amanda Machado disse...

Verdade a neutralidade não mora em lugar algum, mas aqui não há quem mande não...rs