domingo, 13 de agosto de 2017

Só não sei onde guardo o que não vivi

  A estampa não era a mais bonita, a cor não combinava com quase nenhum item que eu tinha àquela época. Perto das outras ela brilhava menos, não tinha alça ou bordas douradas, talvez fosse a menor também. É verde - uma cor que eu não tenho a menor predileção. Mas a vi antes de todas, eu que não pensava em xícaras naquela manhã, a quis com toda força.  Eu a quis na sua solitude e isolamento, eu a quis na sua pequenez, no seu abandono pelo esquecimento dos outros, a quis pela sua individualidade, resistência, rodeada de belezas menos tímidas. Eu daria todo o dinheiro que eu não tinha para libertá-la da opressão dos olhos que não a enxergavam. O negociador da xícara ainda quis me mostrar outras, muitas passaram pelas minhas mãos, antes de eu tê-la. Arredondadas, linhas mais retas, curvas sinuosas, douradas, porcelanas brancas brilhantes, estampas chinesas, pássaros, flores. Também me mostrou outros itens, uma luminária de vitrais coloridos, uma bolsa bordada com pérolas, um gato egípcio, uma boneca alemã. Mas nada parecia ser verdadeiramente tão meu quanto a xícara. Minha avó tinha morrido há um mês e eu não tinha nada dela, embora tudo em mim parecia ser uma extensão dela. Meus olhos grandes parados, meus lábios redondos, meu cabelo de fios grossos e escuros.

  Minha avó habitava em mim, desde sempre. Eu soube ainda pequena e gostava de ouvir que parecíamos. Eu achava isto mais do que qualquer pessoa. Nosso signo, nossos aniversários na mesma semana, nossa teimosia, nossa calma cotidiana e explosão mensal, nossos rostos colados, nossas conversas sem uma palavra; nossos silêncios, cruzando a sala e afastando intrusos. Nossos copos de vinho escondidos, as mãos dela fazendo os pontos no vestido que eu rasguei e que a minha mãe não podia saber - nossos segredos. Minha avó postada à janela da cozinha por longos minutos com olhos parados e doces, de cansaço e aceitação, e eu procurando o lugar que tinha o olhar dela. Eu não sabia que ela olhava para dentro, quando parava em frente ao basculante da cozinha.
- Agora eu sei, vó.

  Uma xícara fora de um conjunto, a única que, possivelmente, sobreviveu aos anos sem se quebrar, sem ser jogada no lixo, sem nenhuma fissura, nenhuma lasca perdida ou colada. A xícara que eu comprei em uma feira de antiguidades é uma lembrança inventada. Não guardei nada da avó, nem brincos, nem colares, nem echarpes, nem livros, quadros, nem foto do seu casamento - nada do que ela não tinha. Não guardei canecas esmaltadas, cristaleira, conjuntos desfeitos de pratos de sobremesa, nem uma foto da sua bodas de ouro - tudo o que ela tinha. Um mês e eu era uma neta sem avó ou herança, tinha medo que a minha memória não se sustentasse sem um ícone. Encontrei uma xícara verde da coleção de alguém, a materialidade de outra história, abandonada, e a chamei de minha imediatamente. Comprei a xícara para substituir o que não tive da minha avó. É a minha preferida, desde então, o café, o chá, o xarope caseiro para gripe, o vinho, todo líquido que me sustenta passa por ela. Até as suas mãos na alça e a sua boca na borda eu inventei. E a minha dor e medo de perder o que eu tinha dela, ficou na praça, na manhã daquele sábado. Saí para comprar incensos e comer churros e voltei com a minha avó.

  Um crachá de um lugar que não existe mais,  faliu ou os herdeiros venderam, coisa assim. Uma fita delicada de um presente que eu nunca usei, mas que gostei tanto do embrulho. O livro numa língua que eu tentei aprender, com uma dedicatória gentil,  mas abandonei. Uma carteirinha de um clube longe, que há muito eu deixei de frequentar, afoguei na sua piscina um dia, foi a primeira vez que experimentei não respirar e quase me entreguei; guardo a carteirinha e lembro de ser salva pelas mãos que viriam outras vezes. Guardo fotos de parentes distantes, de colegas de escola que nem eram meus amigos, de festas de faculdade, bilhetes, receitas que eu não faço mais, papéis que eu possa vir a querer ler de novo. Atlas com a União Soviética, um caderno de biologia que eu nunca mais li, mas tem a assinatura da turma e um bilhete do professor. Guardo o que posso de quem amei e de quem eu fui, porque é efêmero demais cada passagem, mas o sentimento parece impresso nessas testemunhas que ninguém, além de mim, pode ver legitimidade.

  Todas as noites, apago as luzes, velas, incensos, o estabilizador, o celular, as lanternas, luminárias e tudo mais que brilha em casa, mas as lembranças se encontram e fazem festas nas gavetas e caixas, dos armários e da escrivaninha. Mergulho numa piscina na União Soviética e não me afogo mais. Minhas amigas de faculdade escrevem no meu caderno de biologia. Um parente distante encontra meu crachá e o devolve a um colega de escola, que é criança ainda. Enrolo as receitas na fita do presente que eu não tenho mais e guardo-as junto com a carteirinha do clube. Meu professor deixa um outro bilhete no meu livro de língua estrangeira. Minhas memórias se confundem, misturam-se, trocam de lugar e tempo, mas não fogem, não me abandonam, continuam a bordar a minha vida de história e identidade. 

  Deito, fecho os olhos e imagino a festa das memórias. Passo a mão sobre o meu corpo de pijama e sinto a cicatriz ressaltada - é também uma memória. Tenho vergonha de ter saudades do quarto de hospital, onde passei longos períodos; mas tenho saudades, quando sinto a cicatriz na minha barriga. Gostava do silêncio, da solidão, da sensação de estar viva num lugar onde morriam, gostava de não ter que falar ao telefone nem assistir à televisão,  ficar de pijamas esperando que alguém entrasse sorrindo, gostava de não tomar o ônibus e de não ter planos para a sexta, para o final de semana, para as férias. Gostava de não pensar se tinha futuro fora dali ou não. Tenho vergonha de gostar de guardar todo o tipo de lembrança; das suaves e dançantes às duras e cortantes. Mas todas ficam, não sei não lembrar se fazem parte do que sou.

  Escafandrista no fundo de um mar, onde não reconheço corais, vidas marinhas inusitadas. Mergulho, reviro e só não encontro o que não vivi. A emergência da inteligência artificial não me assusta, como criar sensações e lembranças do que não foi vivido?
  Eu só não sei onde guardei o que não vivi. Até a memória da dor é melhor do que não ter lembrança de um quase dia, quase escolha, quase acontecimento, quase desastre, quase encantamento. Todas as vezes em que eu não fui, não tive o que guardar, também não tive como perder. As coisas que não vivi são as piores poeiras que  cegam os olhos, as pedras que cutucam os pés, dentro dos sapatos. Não sei onde guardo o que eu não vivi, mas todo o resto eu sei; até o que eu precisei inventar.
  A avó morreu e não me deixou nada além de mim mesma  Comprei a xícara e inventei uma herança. Minha memória parece não saber se lembrar se não tiver uma xícara que seja. Bebo o meu café e a minha avó aparece na cozinha, mexendo uma panela ou colocando mais lenha no fogão elétrico da minha casa. É bom ter com quem dividir o silêncio nos domingos pela manhã. A xícara verde é o nosso diálogo diário.
- Eu não conto do vinho, você não conta do buraco no vestido e nenhuma das duas falará, com ninguém, sobre a xícara verde. Nosso segredo. Promete?




Nenhum comentário: