quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Teve sempre alguém que partiu em busca do ouro

   Começava com o olhar dele. Era um documentário, um filme que eu assisti em alguma aula, na escola ainda. E começava com o olhar dele. E o olhar é uma coisa brutal, tem olhar que nunca mais desprende. Eu dormi milhares de sonos depois daquele filme, vi outros olhares,  em centenas de filmes que assisti depois; chorei, lavei com água e sal as retinas; esqueci de outros olhos que me assistiram e eu assisti, mas aquele não me escapa nunca mais. Era de uma imensidão, de uma solidão tão atroz e tão humana. Ele sujo, completamente, num corpo fragilizado e aqueles olhos saltando da lama. Dois tristes olhos verdes, muito verdes, de um verde que eu não saberia inventar num desenho. Um homem assim abandonado ao próprio sonho. Eu tentava esquecê-lo, olhar para o fundo da tela, para as outras personagens ou só ouvir o que ele dizia, mas então, não era eu quem o olhava, era ele que lançava sobre mim o aterrador olhar de alguém perdido.

  Era um documentário sobre Serra Pelada, um garimpo no Pará, que entre as décadas de oitenta e noventa recebia milhares de sonhadores diariamente. Serra Pelada era o sonho do ouro e tudo o que ele poderia proporcionar a milhares de famílias: algum conforto material, um futuro mais promissor para os filhos, independência financeira, alguma dignidade e até liberdade. Serra Pelada foi o El dorado de muitas famílias brasileiras. Um sonho que se concretizou para bem poucos.
  E aqueles olhos estavam lá, num filme que algum professor projetava na sala de aula de um escola muito longe do pesadelo que era o garimpo.  Não tinha ouro quase nenhum, só barro, buracos e água contaminada com mercúrio. Homens muito doentes e aquele olhar verde e opaco.  Eu vi esses olhos hoje, de novo, não eram verdes como aqueles, ou talvez pela distância eu não conseguisse identificar, mas mais do que a cor era o que estava dentro.

  Reconheci um sonho flutuando perdido no desalento que é a impossibilidade; a proximidade da constatação do não-acontecimento. Não era um filme, o cenário era outro, mas, de novo, eram esses olhos de desilusão. Já vi olhares tristes, melancólicos, quase desistentes da esperança, mas nessa solidão de sonho recém-desfeito é só a segunda vez. E não me acostumo a ser impávida a um olhar desses. Era um homem numa máquina amarela, que demolia a primeira casa da rua, era um funcionário, alguém contratado para o serviço, portanto não devia ter nenhuma relação afetiva com esse fim. Ele comandava a máquina, que seguia firme derrubando paredes e a cada queda, os olhos mergulhavam mais no vazio. Vi três paredes caírem e não pude mais; não pelos tijolos. O homem longe, muito distante de casa, fosse estrangeiro, migrante ou morasse no próximo quarteirão, não sairia desse deserto de poeira vermelha e chegaria em casa. Não com os sonhos que teve; não o mesmo.
 
  Em quase toda família teve alguém que um dia se despediu para ir atrás do seu El dorado. Teve sempre um filho, esperando o pai no portão que nunca abria. O pai de uma amiga, num domingo de manhã, se despediu dela e dos irmãos para criar búfalos em Tocantins. Todo domingo ela achava que ele voltaria para buscá-la montado em um búfalo, vinte anos depois e ela não acha mais. Ela contava sobre a fazenda, a criação, sobre como se mudaria no ano seguinte para o Tocantins, mas nunca mais soube dele; ninguém soube.
  Teve sempre uma mãe, esperando um filho para a festa de natal, com a comida preferida no almoço, a expectativa de uma aparição sem avisos.
- Ele sempre foi de surpresa. Não veio hoje, porque em data certa sabia que a gente podia esperar. Mas amanhã ou depois chega aí, do nada. Quando menos se esperar.

  As famílias têm sempre uma mãe, esperando um filho que nunca vem para o natal. E sobra comida, sobremesa e muita espera no quando menos esperar. A mãe nunca sabe quando menos esperar, porque ela é só espera.
 Serra Pelada: aqueles homens vermelhos de barro, num buraco profundo, sonhando muito e crescendo esperas, suas mães esperando-os no natal de todos os anos. E os sonhos deles se afastando a cada quilômetro conquistado. Como se recupera de um sonho perdido e inventa um novo? Quando se constata a sua perda?  Eles nascem ou precisam ser pensados com muita disciplina? Não sei se olhos como os do garimpeiro e do homem na máquina voltam a brilhar com a mesma intensidade do sonho de partida. Nunca os vi depois.

  Teve sempre uma enamorada, olhando para o céu, contando os dias, achando que o amado voltasse antes do previsto. Às vezes voltava muito depois, às vezes nunca voltava e, o pior, às vezes voltava um outro, completamente estranho, irreconhecível, um desamor regado pela distância. Quem parte nunca volta, não o mesmo, não do mesmo jeito. É duro quem espera pela volta da mesma pessoa. Até o barulho de abrir o portão, muda. As chaves ganham outros sons. Esperar também é mudar na espera, esquecer de quem foi e estar aberta a um irreconhecível de mesmo nome. Teve sempre alguém que não veio, quando voltou. Os homens sempre foram mais. Estados Unidos, Japão, Jalapão, Pará: para um homem o mundo era sempre pequeno e os sonhos deles flutuavam mais.

  Em quase toda família alguém partiu, algum dia, em busca de um sonho dourado. Às vezes voltam sem nada, noutras nunca voltam. Não é dinheiro, sabe? É atrás de uma conquista, de algo maior. E na crença desse outro lugar; desse sonho, que só espera pelas mãos de trabalhador deles, eles seguem mudando e as esperas não sabem mais em que direção devem olhar. Mas então, fui sendo olhada pelos olhos verdes do homem mergulhado na cor da lama e no veneno do mercúrio. Se ele morreu eu não sei, mas os olhos dele me olharam ainda hoje, de cima de uma máquina amarela.
  Teve sempre alguém que partiu em busca do ouro, do outro, de si e nunca mais voltará. Teve sempre alguém que esperou com os filhos, com a mãe, no aniversário, no natal, uma carta, um presente que ninguém mais tivesse e a chave nunca mais encontrou a fechadura da casa. O pai da minha amiga não voltou em cima de um búfalo e ela inventou que se esqueceu dele.
  Eu nunca me recuperei dos olhos daquele homem em Serra Pelada. Aqueles olhos continuam vivos em mim, mesmo que Serra Pelada esteja vazia agora e eu não vá mais à aula. Queria fechar os olhos e inventar verdes brilhantes para ele, ainda hoje.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas não há mais, 02 de setembro de 2017

Amanda,

Tem olhares que nos congelam como se The Sound of Silence (Simon & Garfunkel's song) tocasse sem parar enquanto estes olhos nos denunciam a vida por detrás deles.

Como sempre seus textos estão vivos e gritam e choram e falam de coisas malucas, emocionam a gente.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas (como não mais?, 03 de setembro de 2017

Caro Paulo,
Há olhares que não perdemos nunca. Parecem exatos, certos, profundos demais e aí não vão embora mesmo. Muito boa sua trilha para esse olhar...essa música é fabulosa.

Concordo absolutamente com a sua leitura, Paulo, os textos aqui falam de "coisas malucas"...muito! rs

Obrigada sempre! Ótima semana.
Abraços,
Amanda