sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Sob os meus pés

   Os meus pés não são como os delas; nunca serão. As mulheres da China tinham os pés pequenos. As mulheres da China tinham que ter pés com até dez centímetros, no máximo. As meninas chinesas tinham os pés fraturados e enfaixados, para serem para sempre pequenos. As mulheres da China tinham dificuldades de caminhar com os seus pezinhos deformados, muito admirados.Os pés femininos na China não caminhavam para muito longe de casa. Quanto menores os pés, mais chances de um bom casamento. Em sapatilhas de cetim bordadas, as chinesas não conseguiam ficar de cócoras, passavam a maior parte do tempo sentadas e só conseguiam se levantar com auxílio dos seus homens. Eu não. Meus pés são escandalosamente libertos.

 Os meus pés muito brancos em cima, amarelos, vermelhos ou cinzas na sola não ficam bem na câmera do seu celular, também não são feitos para caberem numa moldura ou para satisfazerem o desejo de quem quer que seja. Dez unhas vermelhas, pretas, sob vernizes brancos ou transparentes, meus pés têm identidade indefinida, fluida; meus pés são mais livres do que eu. Não decoram, não servem às demandas que não são deles próprios. Meus pés reais insubmissos, chutam, pisam, se alongam, se expandem, resistem, se refazem depois de uma caminhada muito dura; meus pés são mais fortes do que eu. Par descoordenado, atropela ritmos, confunde as direções. Meus pés honestos, cheios de humanidade, porque falham, erram e também se acovardam.

  Os meus pés-alface americana, macios, com ondulações nas beiradas se protegem em sapatos de salto, tênis, sandálias, sapatilhas, oxford bicolores de dança, eles só se vestem e se decoram para a sua dona ou serão eles donos da dona? E só se despem para grama, terra, assoalhos de madeira ou pisos de cerâmica. Meus pés tocam pedras, lama, areia, resistem a cacos de um prato quebrado, desviam dos buracos ou de cascalhos pontiagudos, mas sangram num caminho de flores murchas, compradas de um vendedor insistente. Meus pés suam, tremem, se sujam e são feridos por bolhas, pelo sapato mal escolhido, pelo asfalto ou areia muito quentes, mas não ficam menores nunca. Meus pés ainda crescem.

  Os meus pés rendados, pelas mãos de fiandeiras aprendizes, forjados a custa de muito trabalho e horas de danças coreografadas não aceitam o seu olhar-superfície que não compreende uma trajetória que sobeja. Meus pés de bailarina, com joanetes e deformações. Meus pés de corredora, com bolhas e unhas encravadas. Meus pés que sempre descansam depois de mim, que acordam antes e dormem depois, que durante o sono ainda se agitam. Meus pés impacientes debaixo da mesa, meus pés com pontas firmes quando a música começa. Meus pés que estiveram nas mãos de um médico, suspendendo todo o meu corpo no ar - a primeira vez que voei. Meus pés chutando pernas, tentando acertar a bola, arrancando tufos de grama e, ainda assim,  quase nenhum gol eles fizeram. 

  Os meus pés destroçados de caminhos enganados, buscadores de destinos desconhecidos em encruzilhadas, desfilam orgulhosos sobre as suas expectativas. Pisam, rodopiam, sapateiam, alisam e arranham o seu chão e você nunca os vê. Meus desprendidos pés que ocupam muitos espaços, sem nem fazerem barulho. Meus pés que chegam antes e que me arrastam com eles, se tenho medo de seguir. São ossos, músculos, pele, vasos azuis saltados, quase sempre mais frios que o restante do corpo, que escapam das meias durante a noite. Pés cujas memórias não deixam errar alguns endereços e evitam, ao menos, um número, numa rua, nesta cidade - pés descalços com asas que escapam das ataduras de linho, aquelas dos pés das meninas da China.

  Os meus pés de liberdade vermelha, de coturno preto, sandálias de borracha ou plenamente descalços. Os meus pés variados, múltiplos e autônomos, que batem nas quinas, nas portas, nos degraus e latejam silenciosos, enquanto eu grito. Pés que tentam todas as direções e param em alguma paisagem bonita, sem pressa; sem freios, sem moldes, sem cremes tailandeses. Com óleo de amêndoas, gel com cânfora e lavanda, submersos em água morna com sal grosso. Pés que orientam a desorientação que é o caminho. Que avançam, retrocedem, ameaçam desistir, mas sempre voltam, cumpridores da promessa de nunca desistirem da caminhada. Os meus pés mapa para o infinito.

  Os meus pés raros - arara-azul -  não são para os seus olhos rasos de fetiche retalhado. Sou bem mais que os meus pés e eles também me são e me salvam. Quando quis olhar para os meus pés acertou uma flecha no meu orgulho de ser inteira. Ele me dá a corrida, quando a fuga é o caminho mais certo e estabilidade, quando ficar é bom e não me fere. Pede para ver meus pés e são eles que me afastam da sua imaginação limitada de homem pequeno. Os meus pés não cabem nos seus olhos rasos. Pobres mulheres da China com seus passos curtos e limitados, com seus pezinhos estraçalhados pelo desejo de serem amadas. Sobre os meus pés, sou eu; sob os meus pés, a história que eu não deixo de andar. Mas é que os meus pés não caberiam na tela do seu celular.