sábado, 9 de setembro de 2017

A única pergunta que importa

   Teremos tempo. Só mais um copo, depois dessa música, quando eu eu secar o meu cabelo e passar o batom, depois de acabar esse livro, no final da sessão das nove, quando eles fecharem o bar,  depois de comprar a passagem,  de achar a poltrona certa e desligar o celular, depois que eu mudar o número, depois desse último maço de cigarros. Depois de setembro, depois desse semestre só vai faltar mais um ano, uma prova, um projeto, um casamento ou dois, o batizado e a doença; depois que o médico passar e a notícia estiver mais assentada, vamos encontrar a nossa cura. Depois de uma noite de sono, na volta do passeio  com o cão, depois que eles reponderem ao e-mail - não importa se com um sim ou com um não - depois de eu me acostumar com a ideia, com a direção hidráulica, com o sistema novo, com o sapato, com o despertador do vizinho e o código do portão. Quando desligarem a chave de energia, depois que eu me aceitar. Teremos tempo?

  Teremos tempo de pedir a conta, de dividir os custos do que consumimos e decidir dar a gorjeta ou não. Ainda haverá tempo para comprar a rosa na volta, de ir buscar o sobrinho na escola um dia, de vê-lo numa apresentação de final de ano, de terminar de pintar uma tela, mesmo que não queira mais fazer outras, pelo menos pendurar esta. De comer mais vezes o amendoim do carrinho no Calçadão, de descobrir quem desenhou a placa nova do anúncio artesanal do sapateiro, de tirar uma foto antes de demolirem a casa. De adotar um gato, de oferecer comida e agasalho aos moradores da praça, de comprar pipoca e dividir com os pombos, de cumprimentar o vizinho muito tímido, de nadar no mar, aprender a andar de bicicleta, morar na Espanha e conhecer Havana. Ainda terei tempo de falar francês?

  E quando os filhos estiverem maiores, a crise do país tiver passado, quando tivermos empregos melhores e feito a viagem que já pagamos a metade, quando as prestações do apartamento e do carro estiverem quitadas, então assim, nos acertaremos. Você estará mais equilibrado, eu serei mais segura e nossos filhos alfabetizados, vacinados e muito educados. Sua mãe virá menos vezes, meu pai ajudará a pintar o apartamento para colocarmos à venda. Finalmente, faremos um acordo sem constrangimentos e mágoas, na frente do juiz. Sem listas, sem ofensas, sem acusações, sem olhares desviados e advogados nos calando e falando por nós. Depois, na saída do fórum, sem testemunhas, eu vou tentar devolver o anel e você não vai aceitar e choramos, nos abraçamos e vamos os dois, sem nós. Porque haverá tempo. E as festas de final de ano, como combinamos mesmo?

  Terei tempo de perdoar a festa que você deu para tentar fazer com que eu não fosse embora - os convidados, a música, a minha cerveja favorita, esquentando no copo, que eu deixei a noite toda na mesa de centro, as flores e eu, desconfortável, no sofá da sala que eu queria vazia. Terei tempo para entender quando você mandou uma mensagem, do outro lado do oceano, avisando que o amor acabou e que nunca mais faria o nosso jantar. Terei tempo de não querer ficar e de não insistir que você poderá descobrir, ainda, que na verdade me ama, que é só uma fase. Terei tempo de aprender a não chorar, a não convocar os amigos mais íntimos para a minha defesa, a não negociar sentimento. Você já me esqueceu? Eu já me libertei?

  Terei tempo de encontrar um outro apartamento, onde caiba meus livros. Um novo amigo que dance comigo nas noites de sexta, uma manicure que não retire as cutículas, um cabeleireiro que não se recuse a cortar o meu cabelo bem curto, um amor que sonhe comigo, nós dois juntos, na varanda, que eu viaje e na volta ele esteja me esperando e depois ele viaje e eu também o espere e que as festas de boas-vindas não terminem mal. Depois da dissertação, vou ler só o que gosto e escrever para ninguém. Depois que pedir demissão, não usarei mais saltos e calça social, vou viajar pelo nordeste e andar descalça e vazia de certezas. Terei tempo de não responder às mensagens do celular, e-mail, ligações. Terei tempo de me conhecer - prazer, prazer, como vai?

  Teremos tempo até o carro subir na calçada e arrastar uma vida de nós, até o caroço que apalpava ainda muito pequeno - coisa da sua cabeça - ficar incrivelmente grande e nos pedirem desculpas, quando não existir mais o seio e, logo, nem o futuro. Até o segundo, terceiro e quarto amor passarem sob a janela e não pudermos descer ainda, porque não são seis horas e os meninos ainda são muito pequenos para entenderem. Não visitar a cidade, porque nos feriados a estrada é cheia demais e os finais de semana são para descansar, até a avó não se lembrar de desligar a panela no fogo, depois não saber mais cozinhar o arroz, esquecer o endereço de onde mora, não saber mais chegar à padaria, errar meu nome, meu rosto, até, finalmente, apagar-me da sua memória. Quanto tempo nós perdemos então?

  Tivemos muito tempo até não andarmos  mais na mesma rua e o seu olho marrom não buscar mais os meus lábios. Até não termos coragem de perguntarmos os nossos nomes um para o outro, de não inventar um assunto qualquer e o outro seguir na invenção. Interesse adiado: perdemos o ponto.
  Até esquecermos de perguntar como foi o dia, se  gostaria de ouvir alguma música, se a cerveja gelada cairia bem ou era melhor o vinho comprado há um mês. Até não sabermos o que perguntar e não admirarmos mais os mistérios nos olhos de quem preferimos desconhecer mais a cada noite.
  Tempo - demasiado efêmero, invisível na prateleira do supermercado, sem volta, sem troca, sem etiqueta com a data do prazo de validade. A única pergunta que importa: quanto tempo teremos até o cão decidir com quem vai querer ficar depois que formos embora?



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 0909 deste 2017 estranho, estranhíssimo

Tempo - poderia tentar uma navegação por águas turvas da quântica, mas não é o caso, há na crônica uma coisa, um trem esquisito - este tal de amor a ser resolvido num tempo protelado.

Passos desencontrados, amores findos, idos e vindos, ela na janela há tempos, ele no corredor do tempo.

Gonçalves Dias, o poeta e revolucionário decretou no clássico poema "se se morre de amor" -

Conhecer o prazer e a desventura

No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto

O ditoso, o misérrimo dos entes;

Isso é amor, e desse amor se morre!


Encerro aqui a carta e o café, atrasado como sempre, mas creia, é proveitoso aqui passar os olhos e o tempo.

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas, dez de setembro de 2017 (um ano escandalosamente estranho)

Querido Paulo,
não há atrasos...é bom quando chega para o café,independente da hora e do dia, porque traz sempre coisas muito boas, os poemas,as reflexões, seus olhares e o seu olá.

Não sei...pensava mais sobre o tempo mesmo e no tempo que sempre protelamos coisas...porque teremos tempo. O futuro como uma promessa que nos permite a negligência com o presente.

PS: sempre gostei de "Se se morre de amor"...é lindo.
Uma abraço de domingo,
Amanda