quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Uma lua que não aparece na foto

  Há um lugar para voltar, mas também um compromisso assumido de não ir. Uma dureza que precisa ser sustentada e uma sensibilidade que lateja na fronte. Virar as páginas do livro sem lê-las não me leva para o mundo de Alice; sem coelho, sem relógio, sem rainhas ou chás, a resolução equilibrada em castelos de cartas há meses, num telefonema desaba. A quem não poderei salvar, mas nunca me cansarei de estender a mão em um afogamento? Em que rio me afogaria para não abandonar a quem também me sustenta? De quem, senão deles, me lembrarei quando olhar no espelho? Uma sobrancelha espessa, uma pinta no formato que só nós temos, o quadril largo e a alma cansada de não voltar. Nenhuma queda em um buraco para um mundo de fantasia me resgata essa noite. Nenhum espelho mágico me levará a outro mundo que não seja o meu próprio.

  Há do outro lado do espelho,  os olhos borrados da maquiagem lavada de angústia, por uma tristeza que não é minha. E, por isso,  é mais tristeza. É como torcer para alguém chegar ao outro lado do labirinto, assistindo-o de cima, sem voz. Não há o que fazer para além de desejar muito que ele encontre o seu final. Sem grito, sem intervenções, sem uma corrida desesperada, sem raciocínio ou intuição. É uma jornada só assistida, cuja definição não poderá ser minha. Talvez eu desça e do outro lado do labirinto eu só espere, muda e com o coração exposto numa bandeja. Quem virá a meu encontro, o vitorioso exultante ou o perdido de caminho? O coração é para ambos, numa mesma entrega. Se eu subir no avião, chegarei ao final do labirinto.

  Há um laço que se alonga quanto mais me afasto da minha geografia. Despeço-me do rio com as duas árvores à sua margem, da colina esverdeada e da terra vermelha que não sai dos meus pés, mesmo com água e sabão em demasia. Mas eles não se despedem de mim, passeiam lívidos pelos meus sonhos e vigiam minha insônia. O rio refresca o ardor dos dias que duram mil horas, as árvores balançam meus medos, a colina se estende na minha cama, quando eu chego em casa sem vontade de esticar o lençol e a terra vai sempre debaixo dos meus pés. O meu país não é um espaço, uma jurisdição, um governo, um desmando, o meu país é o que eu vejo da minha colina e aquilo que eu não apago dos meus pés.

  Há um lenço desaparecido da minha gaveta, que eu nunca tive coragem de usar e que agora, quando quis olhá-lo, não está mais lá. Há uma preciosidade que se perdeu na minha bagunça, porque eu quis muito preservá-la das mãos dos homens e da minha imprudência. Por que meus excessos de cuidado acabam sempre matando os peixes e as plantas dos quais eu cuido? Por que eu mato, quando eu zelo? Um jardim somente de cactos, como os do deserto do Saara, do Atacama, de Gobi eu seria capaz de mantê-lo com vida? Os peixes eu sei que não são para mim, eu não me acostumo com a limitação dos aquários, acabo compensando na oferta de comida. Os peixes que eu mato, morrem em banquetes. Talvez eu deva mesmo não voltar, o avião ainda não aterrissou; posso ver o labirinto de lá de cima.

  Há um limite que eu sei que posso ultrapassar, um choro que eu posso conter, uma partida que eu posso adiar. Há uma música na playlist do meu celular em que uma voz potente grita que não tem mais medo nem queixa, eu faço o coro em todas as vezes que ela toca e continuo cantando, mesmo depois que ela acaba.
  Não quero conter, ficar também não mais, adiar é muito longe para alguém que só tem o agora; esses são os meu limites assumidos.

  Há um labirinto que não é meu, mas onde eu me perco porque alguém, cujo retrato carrego em todos os bolsos internos do meu casaco, precisa encontrar sua saída. Se vai fazer tempestade, se vai ser céu iluminado sem nuvens, se vai ser correria ou caminhada lenta, eu não sei, não sei. Pergunto à Alice o que ela faria se fosse eu, mas não abro o livro com medo da sua resposta. Se eu fosse Alice, ficava ou partia? Se eu fosse Alice, assistia do alto ou gritava do lado de fora? 

  Há uma lua com halo alaranjado e rosa, que eu vejo linda da minha cama, mas jamais verei numa fotografia minha. E ela não dura menos em mim porque não tenho uma foto.
  Há um mundo invisível, que escapa enquanto vamos ao banheiro, atendemos ao telefone ou cochilamos numa rede. A lua não vai embora da minha vida por isto. A lua só não fica bem na fotografia. Afundo a cabeça no travesseiro, puxo a cortina até o fim, com um dos pés, e deixo a lua me banhar do meu país e da minha volta. Sou eu no final do labirinto com um coração vermelho numa bandeja de papelão. Eu não sei não estender a mão em um afogamento. Mas ainda mato peixes e plantas; os cactos serão uma possibilidade?





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