sábado, 30 de setembro de 2017

Nós nunca lavamos os cabelos que gostaríamos

  Há um universo indócil, inconstante e completamente cego, entre aquilo que fazemos e o destinatário final de cada ação. Um alvo é apenas uma possibilidade discreta entre outros pontos que uma flecha pode alcançar. Não salvamos ninguém.
  Num mundo ideal, a seta sempre chegaria até o círculo vermelho; certa, exata, firme e segura. Sempre no tempo desejado. Num mundo de justiça, ninguém esperaria muito depois de um pedido de ajuda. Era só olhar para o lado e pronto: o desespero acompanhado alcançaria a calma. Num mundo ideal, nossa vulnerabilidade não nos adoeceria, não nos envergonharia, ao contrário, seria só mais um pouco de nós disponível ao mundo. Rendidos às vicissitudes, mas não submetidos a elas.

  Ajeito a toalha, encaixo o pescoço no lavatório, fecho o livro e estou certa de que não vou mesmo salvar ninguém. Mas não posso ir embora e deixá-lo no escuro. Eu mesma já saí, algumas vezes. Sem uma vela acesa, sem corrimão, confiando na sorte, com a esperança dos pés encontrarem o destino, sem precisarem dos meus olhos. Ele também deve estar andando há muito no vazio de luz e pode saber sair, mas eu quero estender a lanterna.
- Quente ou fria?
- Pode ser fria.
- Que corajosa!
- Nada. Água fria é melhor para o cabelo.
  A água chega morna e eu não reclamo, talvez ela tenha preferido me proteger da água muito gelada que sairia da torneira. Lá fora venta, eu já tremi de frio e ela resolveu que eu não merecia mais deste inverno no sábado pela manhã. O barulho da água no plástico do lavatório, o morno dela no cabelo, os movimentos circulares dos dedos para esfregar o xampu, o sono que se levantou da fronha, contrariado; o livro quase cai das minhas mãos.

  Ela não me salvou, mas não me deixou enfrentar um frio desnecessário. Fez, por mim, uma escolha que eu não soube fazer. Não fez o meu caminho, não me poupou das dúvidas ao ler as placas, não apontou o lado certo, mas deixou a porta aberta e uma fresta de luz me acompanhará nos primeiros passos. As luzes chegam de onde não sabíamos poder esperar. A ajuda voa, sobrevoa, circunda o desconforto da gente e oferece abrigo, quando o caminho é tortuoso.
  Pergunto sobre a mãe dela, que esteve doente e ela suspira. Disse que ela não está bem, que o tratamento é um paliativo somente e que queria lavar o cabelo dela antes de vir trabalhar, mas ficou com pena de acordá-la.
- A noite foi difícil para ela.

  Ela queria lavar uma outra cabeça agora, mas enxagua a minha, faz massagens, escolhe a temperatura mais amena da água e me distancia do frio que tem feito lá fora. Sinto a culpa por não ser dona do cabelo que ela gostaria de tocar; sinto pena da brevidade soprar no pescoço da moça que lava o meu cabelo. O entendimento da finitude apavora, porque não morremos quando o outro morre, porque o gesto não o segue, mas fica, esperando sempre alguém que caiba nele. Por isso, perder um filho é trágico, porque não alisamos a cabeça deles, mais, nem encontramos outras cabeças como a do filho. E o cabelo da mãe dela, quem substituirá?
  Num mundo ideal, teríamos sempre tempo de lavar os cabelos de quem amamos. Num mundo de justiça os gestos de afeto sempre encontrariam o destinatário escolhido.

- Eu não vou salvá-lo.
  Ela torce o meu cabelo na toalha e eu sigo para cadeira mais alta; resignada com a minha impossibilidade.
  Num mundo ideal, nossas diferenças seriam complementares e não nos afastariam nunca. Num mundo justo, passaríamos pelas crises e cresceríamos a partir delas. Teríamos sempre o tempo do erro e depois dele, o aprendizado, o pedido de desculpas e o acertar recorrente. Num mundo sonhado, meu sol em touro nos traria calma e o seu em áries nos aproximaria dos riscos. Num mundo impossível, teríamos chances de nos reencontramos com saúde, sorte e disponíveis para tentar de novo. Num mundo imaginado, nossos afetos não se perderiam de nós e nossa insistência bastaria para que a desistência deles partisse em fuga.   

  Num mundo possível, chegamos tarde para última sessão, não ligamos se o outro não liga e a senha acaba antes de chegar a nossa vez. No razoável mundo em que vivemos, nossas perspectivas diversas nos levam para cantos opostos da sala, sua voz aguda não soa bem no meu ouvido acostumado aos graves e eu não poderei salvá-lo nunca.
  Neste mundo próximo, lavamos os cabelos que chegam ao nosso lavatório e a nossa ação nunca encontra o alvo primeiro.

  Nós passamos a vida tentando recuperar um gesto que não tivemos antes ou um afeto que não recebemos. Gosto de todas as cores de olhos, gosto quando me encontram ou se, por um acaso, desviam e depois me buscam com profundidade.  Mas os olhos pretos, não sei o porquê, sempre me enternecem mais.
  Eu sempre busco me redimir do que eu não tenho culpa. Sei, eu não vou salvá-lo, isto é certo, mas recusar uma mão, enquanto ele se afoga eu não faço mais não, porque no final, eu acabo indo embora nas mesmas águas em que o outro afunda suas esperanças. Nós nunca lavamos os cabelos que gostaríamos, mas continuamos levantando cedo, para tentar encontrar a cabeça que precisa de nós.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 12 de outubro de 2017

Querida Amanda,

Andei rondando a borda das minhas memórias e acredito que frequento este reino há três anos. Sempre aprendendo. As mulheres escolhidas a dedo para cada postagem, as músicas, a sincronicidade entre os parágrafos, as frases, o verbo e o sujeito.

O que sempre vem à tona, e creio, vem da alma'nda, é o altruísmo. Transcende e resplandece - são as nuances da autora sobre seus e suas personagens, que não têm nome - propositadamente não estão personalizadas, pois somos nós outros ali, aos olhos da escritora.

Há neste texto a identificação do que já falei aqui várias vezes, mas desta vez salta de forma elegantemente clara - o hiato passional na abertura do texto - isto é muito bom - "Há um universo indócil, inconstante e completamente cego, entre aquilo que fazemos e o destinatário final de cada ação."

Queria falar mais de mais coisas, mas teremos tempo para muitos assuntos enquanto a vida nos dá esta graça. Até outro dia,

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 15 de outubro (pós-feriado, pós-golpe(S), pós-vergonha do supremo, pós-verdades) de 2017

Querido Paulo,
três anos é muita coisa! Embora já pareça conhecido antigo, eu não imaginava que mantinha esse espaço há tempos (possivelmente mais do que três anos), não conto, não calculo. Enfim, aconteceu sem que eu planejasse, sem me comprometer com documento assinado nem nada... fui vindo, trazendo o que podia e me acostumando com as visitas, especialmente a sua, que não é anônima, furtiva, tampouco vazia, pelo contrário, é declarada, gentil e sempre muito generosa e abundante. O Hiato Passional é, sem dúvidas, um dos maiores regalos que recebi nessas suas vindas.

Teremos tempo sim, para mais conversas. Até mais!
Abraços,
Amanda