sábado, 16 de setembro de 2017

O Amor que recusa as suas chamadas

  Nós ficamos a menos de meio metro de distância uma da outra, mesmo que eu não quisesse saber
nada dela, não poderia evitar. Sentada no primeiro banco, um fio de cabelo grisalho sobressaindo-se na franja espessa castanha, um sinal marrom no queixo, quase imperceptível sob uma camada fina de base, a pedra brilhante nas unhas dos dois dedos médios, uma aliança prateada grossa no anelar esquerdo e um corpo inquieto, muito. Nunca a tinha visto antes, não que eu me lembrasse, mas o ônibus demasiado cheio nos colocava assim, muito próximas,  em uma intimidade compulsória. Muito mais minha do que dela, já que eu podia ver seus tons, seus pelos, testemunhar sua respiração entrecortada. Ela não me viu, não tirou os olhos da tela do seu celular, desde a minha entrada. Ela era minha possibilidade de visão muito limitada, eu não tive escolha; meus pés presos a outras permanências, ninguém consegue se mexer muito. Todos bailarinos de uma coreografia muda, no ônibus da noite.
  Sem uma posição confortável para leitura, sem nenhum diálogo iniciado no ponto de ônibus, segui espectadora dela, com a trilha aleatória que tocava nos meus fones. Nina Simone toca pela terceira vez esta noite.

  Olho pela primeira vez na tela que a mulher segura, leio as tentativas malsucedidas que ela faz e não desprendo mais os olhos - é ele. Salvo na agenda do telefone dela, não é um nome, um sujeito, mas um conceito-sentimento;  sob a alcunha de Amor, uma personificação. Não é João, Joãzinho, Jô, é Amor. Com inicial maiúscula, como orienta a gramática para os nomes próprios. Queria ter eu a segurança dela e numa só pessoa depositar o Amor maiúsculo. Ela ligava para o Amor e a pedra na unha dela refletia, no teto do ônibus, um brilho de expectativa, mas aquele amor não atendia.Três, quatro, dez vezes e o Amor não a ouvia. Quem era o Amor maiúsculo dela? Não consegui evitar a intimidade, antes, nem a curiosidade, agora. O que faz o Amor? Trabalha na cidade? É um homem ou uma mulher? O Amor é delicado, corajoso, robusto ou frágil? Tem pedras brilhantes nas unhas dos dedos médios, é disponível à entrega ou é esse assustado que não atende, que recusa, que emudece?

  O ônibus para em mais um ponto, os passageiros reclamam, porque já está cheio para além da capacidade máxima, ao menos da que gostariam. Uma senhora entra, os pés, dentro do coletivo se movimentam tão lentamente quanto se estivessem numa performance em câmera lenta, mas a mulher entra; a incrível flexibilidade dos corpos, que recebem outra passageira. O motorista arranca, a senhora tem dificuldades em se encaixar adequadamente, ninguém oferece seu assento e ela fica entre nós. Agora, somos eu, a senhora com o corpo instável e a mulher que não desiste de chamar pelo Amor. Somos uma ilha de mulheres, cada uma com a sua instabilidade, cada uma com a sua impossibilidade de segurança, cercada de estranhos que nos sufocam, mas nos amparam nas curvas. O cobrador pede atenção,  um passinho mais para trás dos passageiros e um lugar para a senhora recém instalada. Dos três pedidos, sem um gênio como intermédio, nenhum é atendido. Mas no terceiro pedido ele insiste.
- Um lugar, gente, para a senhora aqui. Por favor, podia ser a mãe de vocês, né? A elegância, a educação, minha gente!

  Mas ninguém se levanta. Na parte da frente do ônibus, a sua maioria são também de idosos.  Decidido a  encontrar um lugar para a passageira que podia ser a mãe do ônibus inteiro, o cobrador se dirige para a mulher, cujo Amor se negava a atendê-la. Se ele soubesse o que ela agora passava, evitava qualquer pedido. Mas não era ele o íntimo, era eu. Não era eu a cobradora, era ele.
- Moça, por favor, a senhorita poderia dar o lugar para a senhora aqui?
Ele cobrou pela primeira vez.
  Ela demorou um pouco a entender que era com ela, mas quando se certificou do pedido, só disse:
- Não. O lugar é meu.
  Agora a coreografia que era muda, passa a ter muitas vozes. Nos meus fones ainda era Nina, mas fora deles, era o suspense de uma radionovela. Quem não podia ver, tentava ouvir. Eu via e ouvia, com Nina ao fundo, claro. E sabia que não era um embate muito simples.
  O motorista olha para trás, freia o ônibus, o cobrador está em pé, meio curvado, porque a cadeira elevada, deixa pouco espaço até o teto, uma criança chora no colo da mãe, jovens indignados gritam "fora golpista" para a mulher resistente no seu lugar, ouço um "fascista" no meio. Mas a mulher não se move, só continua a chamar pelo Amor que brilha em verde, enquanto ela liga e morre em vermelho, depois de gritar muito.

  O Amor vai mesmo deixá-la assim, nessa situação de desamparo? Um grupo começa a vaiá-la. Mas os dedos dela ainda insistem. Não vai, ela não vai ceder o lugar. Não ouve os argumentos, só olha o celular e engole o seco que é não ser compreendida.
- Moça, é só um lugar. Não custa.
Uma jovem de uniforme branco tenta convencê-la.
  Não é. Nunca é só alguma coisa só. A incompreensão não é isolada de um não entendimento anterior. Custa. Não o cansaço das pernas dela, de hoje, de agora, voltando do trabalho às sete e quarenta e cinco da noite. Custa é não ser correspondida, não conseguir ser ouvida, depois de incansáveis tentativas, custa uma vida inteira de recusas, um nome brilhando, obedecendo a norma linguística, mas se negando a atender uma súplica e, agora, a um ônibus inteiro a odiá-la.
- Ninguém sairá daqui até essa senhora se sentar.
  Sentencia o motorista.

  Mas a mulher sentada, com a respiração de alguém que dá braçadas exaustivas, há muito, em mar aberto, não sucumbe, não se levanta, não desiste. Vai nadar o quanto baste até ser atendida pelo Amor.Tenta mais uma vez, o Amor não espera mais nem duas chamadas e recusa a ligação, ela entrelaça os dois pés na base de ferro do banco. Nunca ninguém vai tirá-la dele, faz força, cara de quem vai bater em todo mundo, o coro aumenta:
- Fora Temer! Fora golpista!
  De repente o Amor, com letra maiúscula brilha na tela do seu celular. É ele quem a chama agora, foi o tempo de vê-lo acenar e ela se entrega completamente relaxada, transforma o semblante e inaugura um rosto pacífico, amoroso, satisfeito, pleno.

  Ela se levanta tranquila, pede licença, os pés dos bailarinos fixos, de repente, se movem e se abrem numa coreografia muito eficiente e ela desce. Observo-a, tento aprender com ela, se eu souber o que o amor não queria, talvez aprendesse a também ser atendida. O Amor, o único poder capaz de levantar a mulher da sua insistência. Obediente. Cativa do Amor ou liberta por ele. Não sei se ela desceria naquele ponto mesmo, não sei o que o Amor disse à ela. Mas foi o único a quem ela sucumbiu. Nina Simone acaba e o Chico já rodava na lista, "Não, acho que estás te fazendo de tonta, te dei meus olhos pra tomares conta. Agora conta como hei de partir" e ela só desceu.
  O Amor a tirou de dentro do ônibus. A senhora se sentou, eu desci no meu ponto, ainda espectadora de uma procura e encontro muito injustiçado. Das três, só uma instabilidade não se apaziguou nessa viagem; mas o espetáculo foi bonito.

 

2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 16 deste temerário setembro do inenarrável 2017

Querida Amanda,

Gosto quando fala de amor, é de uma obscenidade cândida, abre as chagas, as feridas e expõe a vida como se apresenta diante do espelho. A moça e seu amor, seu, coisa e propriedade dela, um amor para chamar de seu ou sua, que é da sua propriedade.

Atrás do amor, a galera que grita e não é ouvida - os desalinhados (cabe aqui o processo histórico da ONU - haviam os alinhados ao poder e os desalinhados, mais tarde conhecidos como 3º mundo, uma expressão de exclusão do que ocorre aos alinhados). A moça alinhada ao amor, a protagonista alinhada à moça, o trocador alinhado aos interesses da idosa que não se alinhava com a moça, mas não desalinhava do todo, um 2º mundo, paralelo ao 1º, mas antagônico dele.

Eu não ia escrever nada disto, mas fluiu assim, deleto ou não? Deixarei para a Amanda decidir, afinal o amor alinhado e a vida desalinhada provocou este desalinho.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais,17 de setembro de 2017

Querido Paulo,
ainda bem que não deletou nada. Tudo muito bom... Gostei tanto!

Uma análise tão alinhada não merecia sua censura, aliás que tempos esses, muito estranhos, de ceifadores da expressão do outro.
Obrigada pelo café e prosa tão agradável.
Abraços,
Ótima semana!
Amanda