domingo, 3 de setembro de 2017

Ainda estou lá

  Uma casa de adobe, três  quartos com janelas estreitas, pintadas de azul e uma sala com poucos móveis, cômodos suspensos por uma estrutura  de madeira aparente. Só a cozinha fica no chão e o piso é de terra batida. O banheiro é do lado de fora, apartado da casa com cheiro das hortênsias, do jardim debaixo da janela da sala e arruda fresca, plantada sob a janela da cozinha. Cheiro de café, de fumo, de gordura de porco, guardada numa lata que eu não vejo só com os olhos, cheiro de laranja e limão capeta -  vermelho alaranjado como a gema do ovo que eu como cozido. Risadas e gritos de crianças, latidos de cachorro  e o barulho da bola de futebol, sacudindo a cerca de bambu, do lado de fora. Vozes baixas, palavras distantes, entrecortadas por pausas muito longas, na cozinha. O silêncio é um amor calmo, partilhado perto do fogão de lenha; para sempre eu busquei esse silêncio noutras cozinhas, em que eu entrei por um copo com água. A calma ficou para trás, eu não estou mais lá.

   Noutro canto, uma entradinha, caminhozinho de pedra  arrebentada a martelo, dois canteiros de flores que não chegam a pegar - porque o cão pisa, desobediente, as crianças tentam capturá-lo e a grama fica sempre amassada e verde. Ao fundo, uma casa branca, com varanda de muro baixo, as grades só nas janelas de trás. Piso frio, novo, cozinha quadrada, com uma avó no meio, xarope de mel, doce de figo, leite grosso, fervendo no caldeirão, queijo maturando no quintal, um garrafão verde de vinho e os copos quase sempre pela metade. As palavras saem altas, os assuntos se encontram no teto da casa, não há pausas; ninguém ouve silêncios. As conversas atravessam a porta de madeira e fazem companhia a quem não quer falar, as frases rolam pelo caminho de pedras e chegam até a estação de trem, é um amor quente que ultrapassa paredes; para sempre eu quis ouvir vozes detrás das portas. Perdi a quentura, eu não estou mais lá.

  Cortinas de linho bege, sofá grafite de tecido impermeável, tapete com franjas acertadas com um pente velho, carpete antes, piso marrom depois. Televisão para as novelas, jornal e o filme da tarde, o rádio ligado até às seis, depois só no outro dia, paredes com flores douradas, lustre redondo achatado. Um par de chuteiras, uma sandália rosa e um tênis estampado na parte coberta do quintal. Um pássaro amarelo que não canta, musgos no muro, caramujos e minhocas circulam pelas plantas, na parte aberta. Estradinhas de brita e areia de construção, por onde passam os barulhentos caminhões de plástico. O cabelo do menino escorrega a todo o tempo até os olhos, a menina tem sardas no nariz, eles brigam, uma mulher grita de dentro da casa, eles se afastam e voltam a brincar, de novo; o cabelo, as sardas, o pássaro, os caramujos; os musgos verdes e um quintal que parecia não acabar; o amor era escorregadio quando chovia e muito, muito acolhedor quando trovejava e o medo descia do céu. Não tem mais medo que caia com a chuva, eu não sou mais de lá.

  Perdi a caneta e a vontade de falar. Vou na casa de adobe e me sento na porta da cozinha para me encher de silêncio e calma. Ando pelos quartos suspensos do chão, abro as janelas azuis, descanso numa cadeira de assento de palha trançada e não encontro caneta alguma. Minha voz perdida também não aparece na soleira da porta da sala, não limpa os pés nem me pede desculpas pela ausência. Minha voz deseducada nem parece se atentar que são horas de voltar para a sua dona muda. A caneta também não me encontra, mas sou confortada por esse amor que não pede palavras, da casa sustentada por madeira. Não tem cheiro de hortênsias, arruda, fumo e o sol não chega a esquentar muito, mas a casa é intacta dos meus pés à cintura. Ela me mantém erguida, dura e silenciosa como ela e o amor que ainda mora lá. Eu ainda estou nela.

  Perdida da minha voz , piso no caminho de pedras da casa branca, entro na cozinha e encho um copo com o vinho do garrafão e as palavras dos outros estão todas lá ainda. A avó não mais, o doce de figo também não, nem queijo ou leite no caldeirão. Encosto a cabeça na porta de madeira e o barulho da casa ultrapassa a varanda. O vinho esquenta minha barriga, destrava o maxilar, relaxa a língua e abre um pouco o diafragma, a voz tem o caminho facilitado para me reencontrar. As crianças e o cão não acham a minha caneta, mas eu consigo dizer, muito obrigada. Da cintura até os ombros o vinho da casa me aquece. Eu ainda estou lá.

  A última tentativa é uma rua vazia de gente conhecida, mas cheia de prédios coloridos. Atravesso um portão cinza da garagem, me sento num sofá grafite, numa sala com flores douradas na parede. Duas crianças correm pelo corredor de azulejos e uma mulher pede que elas sosseguem. Ninguém me vê e eu não posso gritar, procuro caneta e voz. Sigo para o quintal e o muro com musgos verdes é, agora, só um pouco mais alto do que eu. Nos vasos de plantas a caneta não está, na gaiola do pássaro amarelo também não, nem dentro das chuteiras ou tênis estampados. Não encontro o que está perdido, o céu está escuro e um trovão grita de cima, mas eu não tenho medo, do pescoço até o topo da cabeça sou a casa de coragem. Saio na chuva, mas eu ainda estou lá.

  Desencontrada de caneta e voz, um sábado inteiro, volto ao apartamento ao qual tenho parecido moradora mais constante, aos desavisados. Cansada das buscas, mas confortada de reencontro e abrigada nas memórias, adormeço no sofá.  Eu só quis chorar de seis da manhã às dez, quando o interfone tocou e a minha vida era festa de novo. As cores de alguém brilham mais na minha janela do que esse sol que começa a se fortalecer em setembro. As minhas cores encontram tons parecidos no arco-íris dele; não são iguais, mas se encaixam nas imperfeições. Antes de abrir a porta, eu encontro a caneta e a voz que pode desejar um bom dia. Eu ainda caminho por todos esses espaços; perdida, às vezes muda, mas solitária já sei que não.







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