terça-feira, 10 de outubro de 2017

Os lenços de papel, não tem mais

  Finalmente abandonou-o. Demasiado atrasada ou  adiantada no tempo dos outros, mas pontualíssima no dela.
- Não dá mais!
   A Capitu, a traidora, a desleal, a que abandona o barco como um rato, num naufrágio. Insensível com quem abandona, não se despediu, não arrumou lentamente mala alguma, não deixou bilhetes espalhados pela casa, nem uma carta emocionada em cima da cama; só fugiu. Sorrateira, desviou  dos adeuses, abriu e fechou, ela mesma, todas as portas, não olhou para trás. Não levou chave, nem cópia, não voltaria mesmo. Decidida, seguiu o descaminho do qual ela é completamente dona e do qual, às vezes se perde, tentando um lugar de certezas partilhadas. Não bateu o sapato na calçada, quando chegou do lado de fora do portão. Vai levar no fundo do solado tudo o que tiver nele impregnado. Ninguém sai completamente ileso e puro de história nenhuma. Não fez nenhuma mala, mas a bagagem está lá, posta nos seus ombros, poros, gestos e pelos. Pode ser que num dia ou noutro, perca  partes dela, se desprendam, se despedacem, desbotem, desgastem, mas alguma herança sempre permanece. O sapato pisa em terra nova,  mas maculado de passado; nódoa profunda. Ela não vai mais voltar.

  Escolheu a poltrona da janela, nunca mais vai viajar no corredor, se puder evitar. Para respirar melhor, ver a paisagem, sonhar com as casinhas ao longo da estrada, inventar personagens para elas e histórias para cada parede de tijolo vermelho. Olhar cavalos - que bonitos eles são - ver pássaros, cães, bicicletas, viandantes e crianças, todos em busca de algo. Do vidro, vai ver os pingos, se chover; os raios, se cair uma tempestade; o sol, se o sol sair; as nuvens mudando de lugar, se o vento carregar. Ela não volta mais.

  Olha para o relógio e não há mais pressa, urgência de voltar ao que nunca foi dela, ao compromisso com a casa da lamúria.
  Que se acerte só, não pode mais acompanhar, aquilo do qual não compartilha. Se amofinou com uma canção que não podia escrever a segunda parte - nem gostava da primeira pronta - cedeu amor à dor incessante, dedicou-se a assoprar levemente as feridas de alguém que ela não pode curar, porque não é o sopro que sara. Ela não vai mais voltar

   Descansada da dor que não era dela, mas que dividia para abrandar o peso - confundiu afeto com carregar sacolas de pedras. Liberta das paredes brancas que esperam por um quadro que não vem, porque os senhorios nunca respondem se pode ou não fazer mais buracos. Solta da coreografia maçante de uma dança que já conheceu começada em outros tempos. Desprendida, finalmente, das marcações de cena, as quais nunca decorou. Demitida do cargo estável de ouvidora dos lamentos, traumas, dúvidas, patologias e reclamações gerais - falta d'água, salário atrasado, nariz entupido. Ela não voltará.

  Ex-colecionadora de lágrimas, desce do ônibus, encosta no muro e enxuga o pranto recolhido, não o segura, mas não se afeiçoa a ele também. Cantarola uma bossa, tem vontade de comer biscoito de polvilho e tomar um picolé de limão.
  Entorna refrigerante laranja na mesa da lanchonete da estrada, procura pelos seus lenços de papel na bolsa e limpa sua bagunça colorida e brilhante ao sol. Sóbria de esperança, a cada quilômetro rodado mais distante da ressaca de todos os dias. Nem sede, nem dor de cabeça, nem enjoos. Ela não vai mais voltar.

  Não vai mais dobrar lençóis de elástico, chorar sobre o amor líquido derramado. Não vai  mais dar conselhos ao telefone. Não irá mais  à farmácia todo dia cinco. Não vai mais ler poemas para o sono do outro vir, viajar no corredor e pendurar a toalha que não é dela. Não vai mais torcer para nenhum time, não vai ter que  procurar o controle da TV para abaixar o volume. Não vai mais se submeter ao silêncio ao sair mais cedo ou chegar mais tarde, porque o sono do outro é precioso. Não vai se limitar
 Não vai mais tirar a cebola do molho, passar pano no ladrilho do qual nunca gostou, deixar de colocar uvas passas na salada, comprar guarda-chuva duas vezes por ano, porque sempre perdiam o dela. Ela não vai mais tentar compor letras para as músicas prontas dele. Ela não volta mais. 

  A Capitu traiu o sorumbático pacto, tomou um ônibus e aproveitou para sonhar, enquanto não dormia. Rompeu sua relação com a tristeza, com os casos infelizes, com as pessoas enamoradas das suas próprias dores, com o presente desolado e o futuro desesperançado. Traiu-os. Abandonou-os, sem despedidas escritas, só sinais sutis antigos.
  De uma melancolia absoluta para um contentamento coordenado sindético. Se voltar a chorar, é choro próprio, autoral, sem dividir composições. Mas os lenços de papel, não tem mais, foram mergulhados em líquido muito doce e alaranjado na lanchonete. Ela irá mais, bem mais.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 22 de outubro de 2017

Querida Amanda,

O leitor vai andando pelo corredor da vida da protagonista, atrás da moça, de uma maneira emocionante. Que texto, buscando em Machado, o outro Machado, a musa, a anti-amélia Capitu.

valeu!

Bom domingo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 22 de outubro de 2017

Querido Paulo,
é isto, Capitu desconcerta, afeta e, principalmente, nos impulsiona. Obrigada pela visita, sempre agradável e doce.
ótimo domingo!
Abraços,
Amanda