domingo, 15 de outubro de 2017

Nós sobreviveremos a nós

  Eu nunca a enxerguei gata. Não como um animal comum a quem eu devesse domesticar. Quando chegou, já era adulta, madura, tanto ou mais do que eu. Nela eu não poderia mandar, mas também nunca quis, de fato, não veria justiça em ordenar. Quando a recebi, assumi todas as possibilidades às cegas, doenças, manias, costumes que não se ajeitariam com os meus, até o relógio adverso veio junto. Mas não reclamei, ela também me aceitou com o desconhecimento do meu histórico. Quando fiquei de cama por algumas semanas, pela primeira vez, talvez ela tenha se assustado com o meu estado de dependência e vulnerabilidade, mas foi firme e assumiu os pés da minha cama com olhar protetor e atenção desmedida. Não foi à rua, enquanto eu estava de olhos abertos, uma só vez. Eu que não conto visitas, não pude negar à memória, as horas que ela dedicou à desconhecida dona adoecida.  Eu nunca olhei para ela e vi uma gata, como ela nunca me estranhou humana. Talvez porque fôssemos ambas adultas e vividas suficientemente para querer catalogar olhares.  Desde a primeira vez que nos vimos, éramos duas vidas, atravessadas por passados misteriosos. Eu já era eu; ela era ela. Duas adultas dividindo um apartamento mal localizado e muito bem  iluminado em um bairro próximo ao centro. Eu que sempre quis ter uma gata, a recebi  sem exigências, tinha um cartão de vacinas e mais nada. Eu estou me preparando para perder o que eu nunca tive.

  Nós nos aproximamos e nos descobrimos sem pressa, alheias às urgências de fora, andamos muito devagar ao encontro uma da outra; paramos muitas vezes, entramos em desvios, observamos o céu, as paragens, os que corriam e rimos, sozinhas, da lonjura que nos afastava, sem nos cobrar proximidade. Com a gata eu soube dividir espaços, músicas, comidas, ausências e depois, afeto. Ela veio silenciosa, discreta e com histórias agarradas no fundo das pupilas, algumas eu tentei adivinhar, muitas eu inventei e acho que ela fazia o mesmo com as minhas. Eu nunca pensava nos seus donos anteriores, nas casas que ela gostou de frequentar, nos braços que a seguraram e nos muitos que a libertaram, ela é mais livre do que eu, acho que teve relações mais desprendidas e saudáveis do que as minhas. Mas pensava no corte cicatrizado da sua barriga. Acidente, cirurgia, maus tratos? No último mês, depois do conforto dos cinco últimos anos de aproximação, conheci mais um aspecto da gata, sua insuficiência renal é progressiva e irreversível. O corte da barriga era a história que eu não queria conhecer.
- Não chegará ao natal.
  A profissional me alertou e a cada feriado eu me sinto mais dela e menos minha. Eu que nunca quis ser dona da vida dela, ameaço vigiar e protegê-la da morte.

  Terça-feira, deixei-a sozinha, recolhida no seu lugar preferido da casa, que antes era o meu. Fui ao centro comprar seus remédios, pagar contas e tentar trocar olhares com outros seres viventes, não escolhi categoria, gênero, espécie; fui atrás de vida, fervilhante potente, nova, movente. Pelas ruas, vendedores ambulantes, oferecendo uma raquete para dizimar pernilongos, mosquitos e toda sorte de insetos voadores que o calor atrai. Eu detesto as raquetes, detesto o calor com o som desses aparelhos de tortura. Todo início de estação, sinto o incômodo do barulho abominável de uma cerca elétrica portátil. Mas os vendedores parecem proliferar, as raquetes não acabam nunca. A cada dez metros, o barulho dos raios assassinos, erguidos em promoções de queimas de estoques, que sempre são repostos.
  Quis fugir da rua, quis não pensar na morte de cada inseto eletrocutado, quis não deixar a gata só, quis não perdê-la, agora, neste feriado. Eu me acostumo com a morte, sei da sua existência, gerada em cada nascimento, mas o som dela me assusta sempre. As raquetes têm esse som. Eu ouvia a morte. Voltei para a gata e não disse nada sobre o som que me apavora.

  Os olhos se fecham, a existência se apaga. Ir embora é o inegociável da vida. Mas quando a brevidade assopra, é mais que um frio ruim na espinha, um embrulho no estômago e um embaraço na voz, é consciência dolorosa de um apagamento próximo. Eu sei como é morrer, sei quando fecham os olhos e eles não se abrem mais, já testemunhei o mistério algumas vezes, mas não me acostumo com os avisos que chegam no vento. A gata morrerá e parece saber disso, tem sido mais carinhosa e frequenta mais o meu colo, como se marcasse a vida dela em mim. No último ano, ficamos mais em casa, fugimos bem menos.
- Estamos velhas.
Eu disse muitas vezes e ela pareceu concordar.

  Da minha mesa de trabalho, luto com as palavras que me fogem, com as que derrapam da minha tela, com as que aparecem e não cabem numa oração ou período. Eu luto contra o cansaço, as dores, as horas que me pressionam, as ordens que eu preferia não obedecer, eu luto, inclusive, contra as desesperanças plantadas no meu pensamento. Tomo café, chá, água, como bolo, maçã, sanduíche, cenoura e luto muito. Enquanto uma frase não chega, olho para ela e percebo que ela também tem lutado.
- Que forte é você!
  Magra, envelhecida, com menos força e disposição, a gata não silencia. Mia, grita, ronrona e acho que suspira. Ela não está vencida e me inspira a não ir dormir antes da hora. O que me faz merecer tantas despedidas ou não merecer quase nenhuma, mesmo que eu tenha tantas? Por que o encontro, a permanência e depois a partida?

   Eu amo a vida que se apagará antes do natal. Aprendi a me interessar pela sua presença, mais do que pelo tempo que ela passava fora, pelo seu presente, mais do que ela já havia vivido sem mim. Dividimos nossas lutas,  respondemos num  instante igual ao chamado a continuar, mesmo no caos, mas as rabanadas, possivelmente, não mais. A gata de quem sou cativa, não me libertará com a sua morte. Quem serei eu, depois dela? Quem eu já sou, desde a primeira vez que nos vimos e eu não a enxerguei gata?  O medo dos relâmpagos era meu, quando eu a segurava nas tempestades. Os meus pés é que eram acariciados pela maciez e quentura dela. O mistério maior sempre foi o meu; ela foi mais sincera e aberta.

  Quero ser outra, quando o espaço da sala não for mais ocupado por ela. Quero usar vestidos floridos, me levanto e vou até o armário.
- Não tenho nenhum vestido estampado com flores. Como posso?
 Chorei pela primeira vez na semana. Não usarei vestido florido amanhã, ainda. Ela sobreviveu ao feriado da quinta. Nos encaramos na sala mais horas, coloquei-a no meu colo e esperamos a noite nos acolher; fujonas-notívagas-senhoras. Eu sobreviverei à sua existência humana e ele carregará a minha felina. Nós sobreviveremos a nós, porque é o destino, porque soubemos que não acabaria, desde que cruzamos nossos olhos, vindos de outras épocas.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 24 do outubro da era glacial da democracia de 2017

Amanda,

Texto tenso, triste. Espelho da alma do sofrimento pelo outro. A morte, as fases, o oculto. Não é fácil despedir quando é parte de nós que se vai.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 24 de outubro de um obscuro 2017

Caro Paulo,
nada é tão certo e, num mesmo tempo, tão desconcertante quanto o apagamento de uma vida. Mas é o curso... imponderável, inevitável e misterioso.
Abraços,
Amanda