segunda-feira, 13 de novembro de 2017

A noite de domingo é só para os sobreviventes

   Eu vou escrever sobre ela muitas vezes ainda, vou escrever até não saber mais se é sobre ela, se é sobre mim ou sobre todas as pessoas que nunca partem de mim.Vou escrever para ela não ser esquecida, vou escrever para que ela não desapareça, vou escrever mesmo que eu saiba que ela não precisa de Penélope alguma para tecer a sua existência diurna. Vou escrever sobre ela, sobretudo, para me lembrar sempre dos seus olhos negros, doces e gentis de todos os dias. Vou escrever porque ela leva seus afetos até a estação, se despede de cada um deles com um beijo e volta para casa para cuidar do jardim, guardar a louça e varrer a casa. Vou escrever, porque não sei quase nada sobre o seu passado, vou escrever pelo que ela é agora.
  Vou escrever, porque ela não desmorona num temporal, não é tragada pela terra num abalo sísmico, porque ela não se afoga em si, não se apaga durante um vendaval. Vou escrever porque ela tem duas mãos frágeis e é forte, tem um andar demorado e é sempre precisa, porque ela é uma sobrevivente e isto me parece muito.

 Vou escrever, porque eu não posso libertá-la da dor de existir, enquanto todos estão indo embora. Vou escrever, porque não posso diminuir a sua solidão de viver em uma casa de quatro quartos, com  três camas  vazias. Vou escrever porque não a amparo, se ela se desabriga no meio da noite, não seguro a sua mão, se uma sombra de medo bate à sua porta. Vou escrever pelo café que não divido com ela, pelo pão único que ela busca na padaria todos os dias, pelas rosas que ela cuida, corta, coloca no vaso em cima da mesa da sala e, depois, troca a água até morrerem. Vou escrever porque ela é a deusa da vida no seu microcosmo, ela é quem alimenta, mata a sede e enterra os corpos, depois de esvaírem-se para o eterno. Vou escrever por culpa, identificação, admiração absoluta. Porque mesmo que eu não saiba quem ela é, enquanto escrevo descubro um pouco.

  Quase todos os dias eu miro seu par de olhos iluminados, atentos e muito pretos; vejo seu sorriso, contido nos lábios finos, mas muito expansivos nos olhos apertados e bochechas rosadas saltadas, que me cumprimenta tão docemente, que eu chego a suspeitar de alguma importância da minha vida nos dias dela. No ano passado, por alguns meses, eu tive que suportar a sua ausência. Olhava para sua janela, onde ela passa as tardes acariciando os pelos pretos da sua gata, para o jardim, onde ela organiza todo o ecossistema, olhava para a porta, onde ela ajeita o tapete a cada entrada e saída de visitantes, para o portão, em que ela fecha e abre os cadeados com a perícia de um carcereiro experiente e ela ainda não estava.
  A sua última companhia de todos os dias havia deixando a terceira cama vazia, há pouco, e suspeitei que, por isso, ela não voltaria à casa. Sozinha, debilitada, envelhecida e, ainda, resistente às ofertas que as construtoras fazem pela casa da família. Lamentei pela partida da irmã dela; comovi-me,  profundamente, pelo laço que não dividiriam mais numa mesma dimensão. E, depois, pensava diariamente no que ela, remanescente, sentia depois de mais uma despedida.

  Esperava não vê-la, eu já a tinha escrita e lamentava por ser tudo o que eu tinha dela.
- Mas é alguma coisa, ao menos.
  Eu me consolava, enquanto passava pela frente da sua casa. Mas, renascida, ela voltou para suas rosas, para os caramujos e minhocas no jardim. Foi assim que a reencontrei: de cócoras sobre a grama, com as mãos sujas de terra marrom e um chapéu de palha com um laço com estampas da fitinha do Senhor do Bonfim, o mesmo sorriso e olhos.
  Três meses de luto, de silêncio, de casa vazia, para mim, e ela agora cuidava do que era dela. Firme, doce, resiliente, gentil e com as mãos na terra.  Foi esse o meu reencontro esperado, nada de fogos, abraços emocionados, nenhuma palavra comovente, nenhuma confissão de que eu escrevo para que ela viva; nada. Separadas pelas grades cinzas da casa, nos cumprimentamos e ela voltou para os meus dias.

  Aos domingos, pela manhã, ela vai à igreja, sozinha ou acompanhada por alguém que a encontra descendo a rua com dificuldades e se oferece para ajudá-la; às vezes, a vejo quando saio para correr. À tarde, vejo-a na varanda,  com um vizinho ou visitante e ela sorri sempre. Mas nas noites de domingo eu não conhecia sua rotina - durante a semana sei que assiste às novelas, enquanto borda.
  Hoje, subindo mais tarde, a vi na janela, olhando para  o céu.  Não sei se é o costume dos domingos...olhar o céu. Mas ela olhava, silenciosa e sem nenhuma sombra de sorriso nos lábios, olhos ou bochechas. Olhava, respeitosa, melancólica, mas firme. 

  Escrevo para ela, enquanto suas ausências são refletidas na lua. Escrevo porque seus olhos voltados para o céu, ficaram ainda mais brilhantes.
  Escrevo porque uma irmã com quem viveu, ao menos, cinquenta anos, deixou para trás uma cama vazia, um quarto abandonado, todo o serviço doméstico, as confidências de meio século,  roupas que não cabem em mais ninguém, o difícil compromisso de ir até o fim sozinha e a penosa noite de domingo, quando não passam nem as novelas.

  Eu tenho gostado de pensar na sobrevivência como uma dádiva errante. Um presente tão bonito quanto sem utilidade; uma obrigação embrulhada em papel laminado com laço brilhante, sem cartão algum. Uma missão última, sem ninguém para conferir o seu desenrolar. Única soldada atravessando o campo minado. Ser a última  a ser levada pela derradeira lava de um vulcão. A seleção darwiniana postulou que os mais fortes sobreviveriam, mas ninguém pode saber, de fato, quem é o mais forte. Não antes de todos irem. Talvez nem ela apostasse assim na própria fortaleza.
  Gosto dela, admiro a sobrevivência. Ela, a última a regar o jardim, a oferecer limonada ao entregador de gás, a resistir a especulação imobiliária e, finalmente, a apagar a luz e ir dormir num domingo de noite solitária. A noite de domingo é a granada que não cabe em qualquer mão. A noite de domingo é só para quem carrega a sobrevivência como fardo e bandeira.




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