domingo, 12 de novembro de 2017

Comboio-solidão. Expresso-multidão

  Os últimos dias de uma viagem são melancólicos; são feitos de suspiros no meio das tardes e adeuses recortados entre os cenários mais banais. Os elevadores,  as galerias de lojas, os canteiros das avenidas largas, os pontos de ônibus, as marquises dos prédios antigos do centro, as escadarias das catedrais, os bancos da praça, os cães apontando a direção para os seus condutores perdidos; tudo, de repente,  é uma saudade longa e infinita. Saudade pressentida, vivida antes de acontecer e, depois, para sempre. Não há recuperação para saudade, nem o retorno, nem o abraço pago, depois da dívida de uma década ou a voz ao telefone todos os dias, nem mesmo o beijo de chegada no aeroporto. A saudade é uma marca, uma cicatriz, um jeito novo de ser. Às vezes dói, em desespero, às vezes só fica saliente,  aparente no peito e na fala, mas não enfraquece quem a carrega.

  Os dias que antecedem à volta são de economia de laços. É melhor não alentar ternuras novas, por isso, sorrir menos, ser menos disponível e agradável é bastante aconselhável; comprar o mínimo no supermercado, para não sobrar; não alimentar os pombos do parque, para não se acostumarem a mão que irá embora em breve; usar o mesmo sapato e calça, para não sujar mais roupas, andar descalço pela casa, mesmo no piso frio, porque o chinelo já foi guardado limpo.
  Os espaços, ao redor, são sutilmente esvaziados, só um vidro de xampu dois em um, dentro do box, um pedaço de sabonete que deverá durar até o derradeiro banho, uma escova de cabelos, um batom, nenhuma roupa em cima da poltrona, nenhum livro na cabeceira, para não ser esquecido, um casaco grosso para os últimos dias de frio fora de época - deverá se resguardar a todo custo de bactérias, vírus ou vento virado, ficar doente pode ser um suplício na viagem de volta.

  As malas semi-prontas, recostadas na parede do corredor, a passagem preenchida em cima do criado mudo, as vozes da rua que parecem mais distantes a cada hora que se aproxima da data de embarque, a luz da sala acesa, para desenhar na memória os frisos das cortinas, a pequena dobra levantada do tapete e os detalhes de cada móvel. Para depois, resgatá-los nas tardes de suspiros, na outra cidade. O quarto, o sono, os lençóis, as angústias, o barulho das sacolas de roupas sujas, os banhos e os almoços são de despedidas.
   O barulho da caixa d'água do prédio vizinho, agora, acalma e ajuda a dormir sorrindo, o sino da igreja que assustava às seis da manhã, vai ajudar a não perder o voo no dia da partida. Ir embora era já um desejo na chegada; ficar, tem sido a vontade secreta desde o dia  em que os meus cabelos sentiram esse vento.

  O amarelo do sol que não poderei levar junto, essa lua mais próxima a cada noite, as folhas das árvores que cobrem o chão, depois de cada chuva, os corredores de tênis coloridos na pista que eu atravesso para cortar caminho, os estudantes de cabelos coloridos e saias estampadas de elástico na cintura, os postes de luzes brancas acesas depois das sete da noite, os motoristas desejando bom dia boa tarde, boa noite,  o cobrador lendo um romance policial, a pressa, a imperfeição, o cansaço, o amor, o desencanto, a descoberta.
  Um jardim, com gerânios, surgido depois dos escombros, o cheiro de manjericão, de terra recém molhada, o balanço da infância, uma mandala de blocos. Tudo será um cartão postal gigante, depois que o avião guardar o trem de pouso. "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar", o poeta me falou.

   O cheiro da cidade que ficará, ainda, impregnado nas roupas por alguns meses, até não ter mais e, mesmo assim, me lembrar dele. O gosto do café que não se repetirá em nenhum outro lugar, o clima que parecerá sempre melhor quando eu estiver longe, o barulho das risadas das crianças que ecoará diferente longe deste país, a impaciência dos garçons que não entendem a minha língua estrangeira. O desejo de fim e o medo de acabar são as companhias dos últimos passeios, nas minhas voltas circulares pelo quarteirão, em que cada término é um recomeço. Estou sobre a linha de chegada e não consigo ser feliz ao ir embora.

  Os dias que precedem à volta, são de solitute e, ao mesmo tempo, tanta gente trazida na alma, são de medo, mas também esperança de futuro, são de noites insones e muitos sonhos dobrados na mala. Poderei sim voltar à rua, ao bairro, à cidade, ao país, ao amor;  duas,  três, cinco vezes ou uma dúzia, mas serão outros.
  Os lugares mudam sutilmente a cada hora, os viajantes envelhecem a cada passo, os nativos escrevem novas páginas a cada dia; o retorno é uma doce visão imaginada; toda volta é a chegada em um novo lugar.

  A viagem é uma solidão irremediável, porque ninguém é capaz de pesar o que ficou fora da mala; no comboio-solidão, a nostalgia dos últimos dias.
   A viagem de partida é um excesso de bagagem desejado, é tanta gente, cheiro, saudade, som; no expresso-multidão, a riqueza do vivido e o mistério do porvir.
  Nada acaba, ainda, enquanto o avião encontrar um solo para pousar; qualquer que seja o chão é alguma segurança de chegada. Despedir-se é sozinho, doloroso e não acaba, ir embora é acompanhado, apaziguador e provisório; o recomeço ora é comboio, ora expresso. Do comboio-solidão, um choro que ninguém alcança; do expresso-multidão, uma ilusão partilhada de fim.
  Na fila de embarque, aperto os lábios, pressiono a ponta da língua no céu da boca, na tentativa de não molhar o saguão com lágrimas de água, sal e saudade, fecho os olhos e escuto Antonio dizer: "Al andar se hace camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar". Não há caminho, poeta, não há caminho sem andar. Entre solidão e multidão, não há um só remédio para aquietar a saudade no fundo de toda a mala.



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