quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Antes que a armadura cole ao corpo

   Pular as poças de chuva, antes que os raios de sol evaporem cada espelho no chão, amanhã, nas primeiras horas do dia. Simular uma vida inteira sem chuva, para gostar dela. Inventar uma vida completamente no escuro e frio e querer aproveitar os vários dias de sol seguidos.
  Anotar as duas últimas frases do quadro, antes que as apaguem,  para entendê-las na próxima semana, uma década depois ou, quem sabe, nunca.
  Parar de correr, muito antes da linha de chegada, para assistir a outras vitórias, testemunhar nos rostos do público o amor que os corredores obstinados não podem ver.
 Ouvir, mais atentamente, algumas vozes, antes que elas migrem para geografias que a minha audição não alcance mais. Ter saudade antes de ter saudade.

  Cuidar da chama de uma vela, antes que a reza acabe. Olhar profundamente para o fogo que é, num mesmo tempo, divino e humano; sagrado e degenerado; luz primeira e súplica derradeira. Inquietar-me diante do fogo, mas não me afastar do seu calor.
  Fotografar a rua, antes que o letreiro luminoso queime as duas últimas letras. Assistir à decadência de uma cidade pelas palavras que ela não consegue conservar.
  Visitar raízes, extensões de caule genealógico, antes que o ano termine ou que não me reconheçam. Restabelecer origens, sem ater-me a elas. Perdoar antes de ter que perdoar.

  Colecionar bilhetes, moedas antigas, cadernetas usadas, dicionários de línguas estrangeiras, livros de fotografias, álbuns de times de futebol, moldes de casas de bonecas, que ninguém construiu; amontoar histórias, guardar pedaços de um amor nunca colado, na última gaveta do armário escondido na garagem, antes que não exista mais os vestígios materiais da memória que nunca se apagará.
  Decretar um final, sem volta, ou buscar um começo vazio de erros, antes que as estações do ano estejam completas. Comemorar ou abandonar um tempo, antes da virada do ano. Partir antes de ficar.
 
  Acolher a insônia, ser parte dela, e não ela parte de mim, antes de amanhecer completamente e não ter mais esse crepúsculo - imagem mais bonita da quase inteireza. Nem manhã, nem noite; um crepúsculo insone, mostrando como romper com poesia e delicadeza sublimes.
  Roçar a cabeça na fronha de algodão e inventar o próprio sonho, sem sono, sem deuses; antes que prescrevam remédios para dormir e nunca mais me livre deles. Escrever uma narrativa impossível, cheia de vozes, num planeta de mamutes e fadas, antes que a química mate os meus pensamentos brincantes. Despertar antes de ter estado dormindo.

  Dizer que é você, antes que eu envelheça mais e você fique completamente calvo. Ir à sua porta às duas da madrugada, debaixo de chuva, descalça e completamente incerta, antes da minha campainha bater e não ser você. Enfrentar cada nuvem de precipitação, antes que a última chuva me proteja em casa do encontro ao qual nenhum de nós irá.
  Desistir de tentar dormir um sono que não é meu, com roupas emprestadas, numa cama que não cabem os meus sonhos inventados.
  Descer dois ou três pontos, antes da minha estação, para saber estar perdida em qualquer dia da semana e não me desesperar. Errar antes de errar de novo.

  Me diga que sou eu e eu saberei que era você, antes que o noticiário nos anestesie, que nos impossibilite qualquer ação fora do sofá. Escreva uma carta e deixe debaixo da minha porta, antes que as séries de TV roubem, junto com o seu tempo sob chuva ou céu brilhante, a sua capacidade de ser ordinário, homem comum e cheio de erros de ortografia.
  Me diga que não sou eu e eu saberei, mesmo assim, que era você, mas que é desse jeito mesmo, que eu não vou dormir menos ou mais, antes que eu ache que vou me curar das noites em claro, se você disser que sou eu. Curar antes de estar doente.

  Desarmar-me, não achar que o tempo todo é só luta, antes que eu empunhe a espada. Não ver exércitos em qualquer campo aberto e não buscar granadas nos bolsos por hábito, antes que eu fira ou mate um soldado do meu próprio batalhão ou um inimigo inocente; todos são.
  Não me acostumar à armadura, antes que ela se integre completamente ao meu corpo e só saia junto com toda a pele e vísceras.
 A última vela acesa e eu nem me lembro do pedido antes de soprar a chama laranja e ir dormir, depois do crepúsculo mais bonito. Despedir antes de ter que ir embora.




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