segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Só as estações chegam na hora marcada

  Ao final de cada inverno, dobrar os casacos, lavar os cobertores, guardar o pijama de flanela no fundo da gaveta, colocar os travesseiros ao sol, no portal das janelas, comprar menos café no supermercado, voltar a ir à feira, planejar uma viagem ao litoral, não porque goste mesmo de tomar banho de mar, mas para sentir o cheiro de mar, ouvir a música dele. Limpar o aquecedor e desligá-lo da tomada, mudar a chave da temperatura do chuveiro, levar o ventilador para o técnico, para ele, mais uma vez, eliminar  o barulho das hélices, cujo silêncio durará por dois dias no máximo, depois, aos poucos, elas ganharão novamente os ecos dos meses de calor.
  Escovar os tapetes e enrolá-los atrás das portas, para deixar o piso mais fresco. Levar  os potes de comida do gato para a varanda, tirar da bancada da cozinha os vidros com restos de xaropes, juntar dinheiro para uma nova geladeira, porque o congelador estragou de novo. Abrir os pulmões, as cortinas, os olhos para os outros mundos depois delas, contar as estrelas.

  Ao final de uma discussão, sentar na calçada, colocar as mãos sobre as pernas, encontrar um lugar em que encaixe os pés, para eles não escaparem, e olhar para a esquina. Primeiro, fixamente, depois afrouxando os olhos, desistir um pouco e testar olhares intermitentes para uma busca sem nome; um consolo que não chegará pelo meio-fio. O olhar para nada, o nó na garganta, a pergunta sem interrogação .
- É raiva. É dor. Ou é nada?
  Contrair a mandíbula, contrariar o próprio histórico, comprimir os punhos no chão antes de se levantar dele. Fazer promessas: prometer ser a derradeira, não voltar para pedir desculpas nunca mais e não chorar. Três juramentos, possivelmente, falidos. Esquecer-se de prometer não esquecer e se esquecer exatamente pela falta da promessa.

  Depois de uma frustração pungente, uma desilusão inevitável,  fumar um cigarro, porque nunca mais tinha fumado; comprar um chiclete de uva, porque nunca mais tinha mascado chiclete de uva; perguntar o preço da toca de natação, porque nunca mais tinha voltado a fazer aulas na piscina.  Querer sonhar com outros cenários, criar novas ilusões e expectativas que poderão ser frustradas, mas que são boas de pensar enquanto estão distantes e o trânsito parado. Fazer um jogo na loteria, comprar o cartão e marcar os aniversários dos parentes.
- Seis e três, as datas de aniversário do meu pai.
   Olhar para alguém ao lado e sorrir, querer fazer o que não fizeram por nós; dar pequenas felicidades ao desconhecido mais próximo.

  Depois do exame, enquanto as partículas dão respostas numa sala esterilizada, fazer espirais nos cabelos, tirar pontas duplas, conversar com a senhora que tem gastrite, olhar para o programa da TV, escutar a conversa entre as recepcionistas, abafar a angústia, enterrar o medo no lixo de copos descartáveis. Ter paciência. Acreditar na ciência, na cura para todo o mal, nas terapias alternativas, nos xamãs ancestrais da terra.
Receber o envelope, conferir o nome e o CPF, assinar o protocolo e descer no elevador cheio. Uma folha com o peso de um martelo. A porta do elevador se abre, o envelope não está mais fechado e não há gastrite, nem mal a ser curado. Ir embora com o peso a mais de uma folha na bolsa.

  Depois da perda,  imprimir cartazes de procura-se, bater nas portas das casas do bairro. Tocar interfones e falar sobre a gravidade da questão, sem chorar; perguntar no comércio local,
para a senhora da janela da casa de esquina. Distribuir panfletos nas portas das igrejas e na feira de sábado de manhã. Publicar descrições, cancelar festas, nunca sentar em um sofá de frente para uma janela no meio da tarde, para não morrer de saudade. Perguntar quanto tempo, a que horas foi a última vez que o viram, prometer recompensas, estudar itinerários e rotinas passadas, pretender encontrar só para perguntar o porquê.

   Ao final do encontro do ponteiro grande com o pequeno no número dez, achar que não vem mais desde às nove, quando o certo mesmo era às oito. Esperar pela última vez, não mandar uma mensagem, tomar o vinho todo e não se arrepender, perguntar como fazem aqueles azeites aromatizados ao garçom e ele, solidário, fazer companhia pelos últimos vinte minutos de ninguém entrando pela porta.
   Ir para casa à pé, falida, pálida e com a boca cor de vinho. Lavar os cabelos, a louça suja, os vidros de geleia vazios, descascar as laranjas, procurar a panela de fazer doces e tirar o quilo de açúcar do armário. Fazer doce de laranja cristalizado até às três da manhã. Saber que não vem, não viria há duas horas antes de decidir ir embora, não viria há três dias antes do marcado ou três anos antes de conhecerem-se; esperar, sem esperar é um aprendizado que nunca se completa.

   Ao final de cada coisa, um universo de coisas a serem começadas. Não há começo ou fim; tudo é um eterno estado de inacabamento.  É como esperar alguém que não virá: esperar sem espera, mas com alguma linha fina de esperança, escondida num dos bolsos.
Só as estações chegam na data marcada. Dia vinte e um de dezembro levo o ventilador ao conserto.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, cinco de dezembro de 2017

Querida Amanda,

Fico vendo o curso das suas palavras feitas como as coisas tangíveis da vida no rio da nossa existência que corre sem parar, 24 horas por dia, ora em calmarias, ora em corredeiras, enfim, há um rio de palavras levando vultos, solidão, saudade, sentimentos escondidos, sentimentos à claras e toda uma vida ali, batendo nas pedras do leito, fazendo curvas, quedas bruscas e sempre indo, indo, indo ...

Quanta poesia, quanta dor neste texto!

Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 06 de dezembro de 2017

Querido Paulo,
sim, sem parar segue o curso da nossa existência. Às vezes parece demasiado rápido (caso das últimas semanas), às vezes lento, lentíssimo (caso das últimas horas). E, no final, nem uma coisa nem outra. O tempo é único dono dele mesmo; inegociável, imponderável. E nós, só passamos...

Muito obrigada pela leitura e pelo café agradabilíssimo de sempre!
Abraços,