quarta-feira, 22 de novembro de 2017

No deserto sem nome

   Todas as vezes em que ele chega à praça, há o afastamento. Os que já o conhecem, fazem expressões de desagrado e se viram de costas para ele. Quem o ouve pela primeira vez, se surpreende, tenta compreendê-lo, por alguns minutos, e acabam por desistir. Deixando-o só com o seu destino, sua narrativa confusa, suas emoções, saltando do livro marrom com letras douradas para ninguém.
  Paletó azul desbotado, no calor de quase dezembro, camisa de seda branca, com o colarinho já amarelecido, suor guardado no lenço de pano que ele passa nas têmporas de tempos em tempos. É um homem de mais de setenta anos, suponho, e uma vitalidade na voz, que se só o ouvisse, imaginaria-o bastante jovem. Mas fui ter meus olhos nele primeiro; não tive a chance do engano.

  Ele com sua oratória no parque central, enquanto os funcionários do serviço de iluminação testam as luzes para decorar o prédio, os comerciantes devolvem o troco, as crianças saem da escola e entram na fila para comprarem pipoca e seus pais com pressa, com o carro estacionado em uma vaga proibida; as pessoas passam a todo instante, vão para muitos lugares, se cumprimentam, se olham ou não, conversam, esperam, desistem, odeiam pagar contas e entrar em filas, espantam o cão, esbarram suas sacolas nas pernas de desconhecidos, pedem desculpas ou só puxam com mais força suas alças, reclamam do trânsito, jogam o panfleto da vidente no chão e ele, plácido, na calmaria desbotada do paletó azul, escolhendo palavras. Conectando ideias que eu não consigo alcançar, mas que tenho feito o esforço, pelo tempo livre involuntário, pela identificação com a sua sorte ou talvez pelo  confusão do discurso, que eu tento organizar em mim.
   Minha última saída. Salvação...essa é a palavra mais repetida do repertório dele.

  Ele chega e o parque está lotado, possivelmente, já sabia a hora em que teria mais possibilidades de ser ouvido. Acabada a escola, os pais passam com os filhos, os professores correm para não perderem o ônibus e não se atrasarem para a próxima aula na outra escola, os secretários escolares andam em grupos, os diretores respiram; acabada a hora do expediente, homens atravessam o parque, mulheres ajeitam suas bolsas na frente dos corpos para não serem roubadas.  A hora, o lugar - o mais central da cidade - o figurino, os gestos, a iluminação atrás dele, o lenço, o livro, nada é por acaso. Existe uma intenção muito estudada ou, ao menos, instintiva ou empírica. Nada é improvisado, nada é casual nas cenas que eu assisto há dias. Mas o que mais me chama a continuar a vê-lo e a ouvi-lo inteiramente, com todas as partes do meu corpo, é a sua insistência nas palavras, esta sim, tem atravessado mais que os meus tímpanos.

   Há, a todo o tempo, gentes no parque, mais gente que circula do que se mantém. E essas vozes transeuntes gritam, assobiam, cantarolam, falam mais alto do que ele; a maioria, o ignora, mas ele sobe sete degraus do prédio público e discursa como se falasse a um auditório muito atento. Hoje choveu e eu não estive lá, mas sou capaz de acreditar que ele estivesse no mesmo lugar, com um guarda-chuva talvez, insistindo, laborioso com as palavras que saem e não encontram outros destinos. É um homem de fé, percebo. Não pelo cristo que ele proclama, mas pela convicção que empreende em cada sílaba, em cada som. Ao deitar, escuto a sua voz no travesseiro, sonho com as palavras dele, chegando em um barco e me salvando de um afogamento em mar alto. Sempre sonhei com afogamentos, mas ser ajudada por palavras de um desconhecido ainda não tinha me acontecido em sonho.

  Mas ele está só. É irremediavelmente sozinho depois que começa a falar. Talvez o aceitassem calado, talvez não o rejeitassem se ele não subisse os sete degraus da escadaria, não passasse o lenço tantas vezes na face, enquanto o discurso segue, mas ele sobe, fala e é sozinho.
  Como o homem da banca de jornais não se mostra solidário? Também compartilha palavras, num outro universo, mas são palavras. Como as professoras da escola não param, por alguns poucos minutos? Elas conhecem o vazio da fala sem escuta, da palavra sem um pouso.

  Falar é um deserto profundo. Depois de estarmos lá não há volta, só vazio e solidão. Se a voz não chega ou se chega diferente, a frustração do universo de areia e sol vai nos acompanhar sempre. Ser ouvido é uma glória que eu não estou certa se ele persegue. A fala dele é a sua salvação. O seu cristo é feito de verbos, pronomes, substantivos, adjetivos e suor.
  Sonho com ele há três noites, em duas, só sua voz apareceu no sonho, com as palavras num barco que me tirava da água. A salvação ecoava...
  Mas na última noite, a de ontem, enquanto eu era submersa pela água, era ele quem vinha no barco, mas, calado, não me estendia a mão. Eu me afogava sem suas palavras.

  A palavra é o seu deserto; não ser ouvido é o seu destino. No deserto sem nome, eu não estou mais só. Tem alguém no mundo que também fala para ninguém. Às dezenove horas, todos os dias, eu estou lá para ouvi-lo, agora. Até eu alcançar a salvação nas palavras dele, até eu não ter que ir mais ao parque a essa hora ou até ele terminar sua travessia. Porque a minha parece bem mais longa, não parece terminar logo. No deserto sem nome, ele ainda; eu, por muito tempo.



4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 26 deste nebuloso novembro deste fatídico 2017

Querida Amanda,

Primeiramente ouso dizer, mas não profetizo, que 2018 será tão ruim que 2017 parecerá um conto de fadas com final feliz. A política é uma arte que transcende à percepção dos mortais - há algo aí, ali e acolá, algo que não estamos querendo ver.

Há polarização de ídolos, um maniqueísmo muito bem elaborado. Quando começo a clarear estas penumbras, suspiro dobrado. Como somos tolos.

Mas não foi para isto que vim aqui tomar este café com você no São Matheus (eu gosto do São Matheus). Eu li em parte, por que no todo ainda não consegui, sua citação de Maria Zambrano. Fui procurar e encontrei Filosofia & Poesia. Que coisa metafísica é aquilo? Uma luz na escuridão destes tempos.

E este texto aqui é claramente influenciado por esta linha de pensamento, há nele chaves e processos integralmente metafísicos dentro do que pude compreender. Talvez já seja o processo ontológico ascendente. Muito bom, Amanda!!!

Me parece ser você um ser agnóstico, pelo que transmite nos seus textos - um pouco da gente acaba sendo colocado nos personagens. Mas não é um problema, de jeito nenhum - nestes tempos de templos farisaicos, malafaicos e fascitaicos é uma ilha de cândida lucidez.

Dito assim desta maneira foi para desejar-lhe a benção dos céus, os céus dos anjos, dos arcanjos, dos querubins e dos serafins. Um céu tangível a ponto de ter abrigado em corpo e alma a Enoque, Elias e Moisés. Deus abençoe seu caminho!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 27 de dezembro de 2017

Ah Paulo...
Infelizmente, ouso concordar com as suas não-profecias. Ao que parece estamos entrando em um túnel sem vistas para o seu final. A única luz possível é a fé; em algo, em alguma coisa, na própria fé, que seja.

O jogo político é que é nefasto...dia desses num capítulo de um livro que acho que já comentei com você, "Um mundo sem limites", do Pierre Lebrun, ele comparava os regimes totalitários à democracia e eu não levei um susto. Decerto que eu prefiro a democracia rasgada, pisada, mastigada e cuspida a qualquer regime totalitário, mas ao longo das considerações psicanalíticas do autor é evidente as aproximações e a maior delas, me parece, depois de alguns dias refletindo sobre a leitura, são as negociações (ou negociatas, no caso Tupiniquim) típicas de toda trama política. Negociar o inegociável é um preço demasiado alto.

Mas, enfim...que bom que encontrou Zambrano... é uma autora tão à margem, tão esquecida e imerecidamente ignorada. Gosto dela, muito.

Embora o cenário esteja a cada dia mais obscuro, tenho um tipo de esperança que não é no Estado, na democracia, tampouco no jogo político. É mesmo no estado das coisas. Em períodos de dificuldade por todos os lados, da ilha, enxergo algum brilho. Tem um livro lindo, não sei se chegou a ler, mas recomendo muito, li no começo do ano, acho, "A guerra não tem rosto de mulher" é de uma jornalista russa, que escreve como uma romancista...é bonito mesmo. São relatos de soldadas soviéticas durante a Segunda guerra. As histórias são comoventes, as narrativas muito bem delineadas, mas o mais impressionante (por isso eu me lembrei agora) é que a vida acontece plena, de alguma maneira, mesmo em situações extremas. As soldadas russas em meio a dificuldades inacreditáveis, mas amam, sonham, colhem flores, se emocionam...acho essa uma grande lição da vida. Ela não escolhe situações favoráveis, ela só acontece.
É isto...é alguma luz no túnel pelo qual só começamos a nossa jornada.

Abraços, Paulo.
Ótima semana.

Paulo Abreu disse...

Sua recomendação literária remete à Milan Kundera - interessante, há uma relação forte entre a descrição sobre a guerra do ponto de vista feminino e a Insustentável leveza do ser.
Nem tudo está perdido - com esta mensagem executo pela primeira vez o processo no smartphone - um pequeno salto ...

Amanda Machado disse...

"Nem tudo está perdido"... que assim seja!