domingo, 19 de novembro de 2017

Às vezes, um amor só não serve mesmo para amar

  Um homem coube num poema. Encantador ele ficava na folha, antes branca, agora  escrita. Seus olhos negros, inspirando os versos, sua voz rouca, cadenciando frases,  que contornam outras frases, criando espirais de beleza etérea. Sua estrutura óssea, furando o papel e atravessando o próximo poema que não era sobre ele; agora é, também. Suas sobrancelhas grossas, sublinhando os títulos, suas unhas quadradas, desfolhando mistérios publicados. Suas dúvidas e desistências, costurando a lombada de um livro artesanal. Suas ideias brilhantes, iluminando as ilustrações da capa.
   O Homem-poesia, atravessando as páginas, pisando em nuvens de letras, ocupando as linhas e enchendo de lirismo um poema que era nada antes dele. Vai embora o homem e o poema fica; na estante, no aparador, na mesa de um café, na página de um livro que ele nunca vai ter nas mãos. Obrigada ao homem que viveu no meu poema e depois foi embora.

   Um amor cabe numa música nova, recém descoberta. Ou antiquíssima, que volta a ser trilha constante nas tardes de intervalo do trabalho e noites de junho. Camisa  de estampas que dançam, pés morenos descalços, mechas de cabelo soltas nas orelhas frias. Um amor que serve ao corpo flexível, um amor-bailarino que ensina os ritmos e dura até as pernas fugirem do salão. O homem sonoro, que serve às danças no meio da cozinha, a mão na cintura, aos pés sincronizados e olhos mergulhados na minha alma que se dobra aos sons e palavras entremeadas.
  A condução amorosa de um estado de inércia para uma euforia dançante. Um homem que mora no repeat do aplicativo do meu celular. Obrigada, moço, por durar uma coreografia inteira da Bossa nova que eu não escuto tantas vezes mais.

  Às vezes um amor serve aos sonhos, às narrativas oníricas ou pensamentos que acompanham no elevador.
- Quem terá sido antes do nosso encontro? Quantas voltas sob a lua, até me encontrar? Buscava a minha mão ou uma outra? Por que não soltou a minha, antes de eu escrever uma história para ele? Sabia ele que eu escrevia? Quantos mantras conhecia, antes que eu ensinasse os que eu aprendi na ioga?
  Um amor também serve para desviar caminhos. Se antes ia por uma estrada, o amor ensina um  atalho, uma rua que nunca fez parte do itinerário costumeiro. Um amor que mostra novas geografias nos mapas que eu nunca tinha aberto antes. O amor que desloca os mesmos cenários e expõe outros novos, escondidos. Obrigada ao homem que me convidou para conhecer uma vila que eu ignorava existir e que, agora, escolho para morar, sozinha.

  Às vezes, um amor serve para refletir uma imagem sorridente no espelho do banheiro; um amor para fazer de quem ama outra matéria; se antes, opaca, agora, brilhante.
  Não interessa se é recíproco, o quanto de cada um tem no tubo de ensaio, tampouco o tempo de duração da experiência. O nome das soluções, a raiz do mistério, se a ligação é covalente simples ou dativa  não é mais importante. A investigação inibe a fluidez; o método afasta o verso. Se é ouro de tolo, difícil saber porque não vai consultar perito nenhum; é precioso igual. Obrigada, moço, porque me ajudou a me ver mais brilhante nos dias nublados, em que em espelho nenhum eu me reconhecia. 

   Alguém que sabe coisas que eu não sabia e não saberia, porque não conhecia esse alguém. Um amor serve para desafiar a aprender coisas novas: o que significa a tatuagem em sânscrito? Qual a origem do sobrenome? O cenho franzido é desaprovação ou miopia? Dois terços de tinta branca com um de azul marinho, é a melhor mistura para chegar a um azul céu?
  Um amor que serve para  destacar qualidades que, antes, ninguém nunca soube e  que nem eu me lembrava se tinha. Para desafiar impaciências adormecidas, com atrasos, mentiras, telefones mudos e silêncios conciliadores. Serve para enriquecer o vocabulário com palavras há muito inutilizadas. Obrigada, homem, pela companhia dos dias e pelos passeios em rios transbordantes, sob a lua cheia.

  Às vezes um amor serve ao sono, durmo muito bem com o calor de um outro corpo, com os pelos e a  respiração que inundam o quarto de quentura, presença e conforto. A insônia vai dividir outras camas, enquanto Morfeu me visita com mais frequência.
  E o despertar ganha outro sentido,  abro os olhos, descerro as cortinas, tomo o banho morno da manhã com mais energia,  porque há alguma felicidade que quer sair à rua.
  Obrigada ao pensamento repetido que me adormece e acorda. Mesmo que não dure muito, já é um pouco de saúde na cidade adoecida de desamor.

  Um amor e as suas múltiplas funções. Um amor que serve para conhecer outros mundos, para reconhecer o próprio, para ultrapassar memórias ruins, para ajudar a ouvir vozes internas confusas, para estabelecer contatos com outras civilizações. Um amor que ajude a me molhar em outras águas, chover em outros solos, aprender a nadar com outros peixes.  Escrever, ouvir, ver, cheirar, ler, abraçar, sonhar, descobrir, desafiar, deitar no ombro, dividir a comida, a história, o medo, a alegria. 
   Às vezes,  um amor só não serve mesmo para amar.  Mas um homem coube numa poesia e nas páginas fechadas ele não morre sufocado, o amor-eternidade em um livro que alguém lê.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 21 de novembro de 2017

Amanda

Só para dizer que gostei do texto. E, claro, tomar um café quente, puro.
Tempos difíceis requerem leituras boas.

Abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 21 de novembro de 2017

Querido Paulo,
Gratíssima! Que bom que a leitura foi uma agradável companhia, com o café, é claro!

Tentaremos não sucumbir as dificuldades. Abraços