sábado, 30 de dezembro de 2017

Esse ano como os outros

   Doze meses. Um ano começado em um janeiro quente e chuvoso; um  ano terminado em um dezembro chuvoso e quente. Algo para começar na segunda-feira, num primeiro dia do mês um, uma parte abandonada, esperando recomeço e um outro algo para terminar, mesmo que não tenha nunca um fim.
  Frutas tiradas do pé antes do tempo, amadurecendo entre os jornais, dentro das caixas de madeira, na feira das quartas, crianças crescendo e deixando as mangas das blusas curtas, as barrigas de fora, as calças mais apertadas nos quadris a cada dia. Cinemas vendendo ingressos, pipocas e sonhos; igrejas tocando sinos, entoando hinos e consolando desesperanças. Muitas vidas incompreendidas, despedaçadas, julgadas, consumidas pelas chamas das injustiças, das ausências e das opressões nossas de cada dia. Pequenas felicidades, surpreendendo nas esquinas, atropelando pressas, dores e esquecimentos, oferecendo refresco, cadeira macia, abraço morno, compressa gelada e lembranças que sorriem.
  Esse ano, justamente, como os outros.

  Dúzias de cartas enviadas a alguém que nunca respondeu, lágrimas de alívio sobre o papel em borrões de tinta salgada; os perdões que chegam pela janela sem os selos nem remetentes. Entre as linhas de um papel, a redenção da heroína de si mesma. Não há torres altas da qual não possa escapar sem precisar do cabelo, que é curto.
  Vinte e quatro apostas erradas, duas a cada mês, jogadora compulsiva que não anota os erros de cada tentativa. Apanha flores que não duram nada no vaso, mas deixam o perfume por semanas; o suspiro fundo recupera a estadia curta. Uma música antiga, que é descoberta recente: por onde andava os acordes que me socorreram tão tardiamente?
  Uma futura amiga distante, cuja conversa é ponte para Tara,Terabitia, Quixadá, Pasárgada, Nárnia ou Havana. Seu delineador mais grosso que o meu, nos seus olhos menores que os meus, sua coragem no erro, no traço torto e assimétrico.
  Esse ano, quase tão exatamente, como os outros.

  Doze questões impossíveis de responder, uma a cada mês, em avaliações feitas para permanecerem insolúveis. Dez textos por mês, cento e vinte ao final do ano e ela ainda não disse nada; nem vai, mas continua, ensimesmada e sorridente; obstinada e melancólica.
  Desperdício de café que sempre sobra no bule, biscoitos que murcham no pote, dízimo de açúcar para as formigas indomesticáveis, mas dóceis. Chá quente em maio, junho, julho e agosto, transbordando na xícara com água mal calculada. Suco de melão, pêssego, manga, morango, melancia, abacaxi, maracujá, uva doce, laranja e limão nos dias de muito calor, deixando nódoa nos panos de prato, camisetas e tapetes; descuido de lábios sedentos e mãos descoordenadas de vontade.
  Esse ano, tão errante e bailarino descompassado, como os outros.

  Uma coleção de poesias partilhadas. O que é dividido pode ser colecionado? Ou uma seleção de poesias pulverizadas. O que é distribuído, fica perdido em pó?
  Fotos de desconhecidos com os rostos desfocados, secretamente publicadas. As imagens que os olhos do fotógrafo veem são dele ou dos corpos que as refletem? Quais crimes as lentes e as mãos que a direcionam cometem? Há absolvição para a beleza contemplada e repartida na mesa com o pão e vinho? 
  Somatização de intranquilidades noturnas e dores diuturnas que enfraquecem unhas e incham joelhos; emocionar-se adoece; não se comover endurece e mata.
  Esse ano lírico e desatinado, como os outros.

  Domar cavalos imaginários, porque não quer ter habilidade para disciplinar nenhum ser vivo. Sem usar chicotes, couros de tirania; sem aumentar a voz, gritos de racionalidade perdida; sem cadeados ou senhas, sem chantagens ou pressões, sem os contratos com  termos traiçoeiros,  passos ferozes de coerção e abusos.
  Montar em tigres brancos, sem sequer encostar em seus pelos. Flutuar no lombo de um animal, sentir a sua respiração, seus batimentos cardíacos, seus vasos e veias, sem colocar nenhum peso ou sela sobre ele; voar por cima dos cafezais, milharais, telhados, rios, ribanceiras, fontes de água; liberdade solitária e acompanhada. Viventes livres.
  Esse ano, com desejos doces de liberdade, como os outros.

   A previsibilidade das ruas esburacadas, do vendedor de chicletes e balas, passando entre as mesas dos bares, os estudantes com fones de ouvidos coloridos e mochilas volumosas, passando, com dificuldade, pela catraca do ônibus e os doze meses. Garrafas de água vazias na geladeira, boletos para serem pagos antes do dia dez, classificados, listas de tarefas, remanejadas permanentemente e as de compras, perdidas antes de chegar ao supermercado.  Uma parada na loja de móveis usados, para  mobiliar apartamentos que ainda não existem. Lágrimas expostas a desconhecidos e ocultadas de íntimos, discursos desperdiçados, causas perdidas, mas luta levada a cabo até o último recurso.
  Esse ano como os outros. 

  Esse ano, tão inédito e irrepetível, como os outros, mesmo que os doze meses tenham permanecido enfileirados, um seguido do outro. Mesmo que a casa seja a mesma e as cores das paredes não mudem, mesmo que os sonhos se repitam e as esquinas também. Mesmo que o gato continue amarelo e zangado, que os vizinhos se mudem sem eu perceber e que o sol desgaste mais as cortinas que eu não troco.
  Esse ano, diferente, como os outros.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 08 de janeiro de 2018

Querida Amanda,

Quem diria, chegamos ao Janeiro, sim o tempo existe, não para e não olha para trás.

Precisei ler de novo seu texto, que no princípio deu-me uma visão e depois turvou aqui e ali e aclareou ali e lá. É a permissividade da escritora nos colocando diante de uma protagonista melancólica, desesperançosa, mas lúcida. Falta-lhe talvez a fé, apesar de dar conta de tudo que se passa ao seu redor..

Gostei da foto, a moça com olhar para o passado, mas indo em frente. Descobri aqui, numa busca pela imagem, que se chama Elle Fanning, e tem apenas 20 anos. Vinte anos ... quanto tempo leva para enterrarmos as dores acontecidas há vinte anos?

Encerra com Penélope Cruz, minhanossenhoraparecidascausasicoisas, tenho por ela uma paixão patológica. Seus olhos, sua boca, ai-ai ... Penélope, Penélope ...

E no meio, a cronologia passional, começando pelas frutas tiradas no pé - coisas genéricas, simples, mas que o tempo vai aclamando feito um Oscar de melhor roteiro.

A seguir as dores pessoais. Das cartas, dos erros, do futuro. Há uma coisa aqui, não é? Um enigma ocultado sorrateiramente pela protagonista. Acho que encontrei uma provável resposta através de uma parábola - Todas as vezes que tomamos atitudes com ódio ou raiva, além de serem atitudes que nos custarão caro, deixarão cicatrizes que nunca se fecharão. Pena que só descobrimos estas nuances da juventude já numa fase onde estaremos ao largo da vida adulta, na porta da velhice.

A protagonista segue com sensações líricas errantes e sobretudo ao desejo, que aparece doce, como se a liberdade assim o fosse - ser livre é também saber que ao andarmos descalços, juntos ou separados, sozinhos ou acompanhados, pisaremos em espinhos e pedras e mesmo com a dor seguiremos pois foi o caminho que escolhemos. Deve ser isto quando a moça afirma que será como nos outros anos - chegou até ali caminhando livre, com todas as matizes, obstáculos, lágrimas e sorrisos que custam a liberdade.

A moça termina com um desabafo de desesperança. Está cansada, esgotada, toda a crônica foi um enorme lamento para concluir que não acredita em mais nada.

Sim, a carta ficou longa, mas o texto não é fácil à primeira vista e resolvi ler o que não estava escrito, dentro do meu ponto de vista. Enfim, 2018 teremos coisas acontecendo no mundo exterior, periférico e interior, mutações que podem provocar mudanças para melhor ou para pior, nunca saberemos até as experimentarmos.

Morrerei em 2018? Não sei ainda, mas estou vivo e isto é condição sine qua non para evoluir ao óbito, o que seria a mudança radical máxima, então sigamos errantes, Amanda, pois ainda estamos aqui, vivos com histórias para contar!

Feliz Ano Novo!
Obrigado por ter paciência comigo.
Obrigado por permitir a leitura das suas obras!
Vá e seja Feliz!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 09 de janeiro de 2018 (chegamos aos fatídico mês, ano...compreenderemos, um dia, se foi justo ou não. Mas já temo que não.)

Querido Paulo,
Sou eu quem precisa voltar algumas vezes à leitura pormenorizada de suas cartas/conversas algumas vezes, antes de tentar respondê-las. Esta, possivelmente, foi uma das que mais repeti a leitura. São reflexões muito atentas, observações muito sutis que não podem ser desperdiçadas ou lidas com muita pressa...aliás, aqui é o lugar de não ter urgência com as palavras, creio.

E, como sempre, me parece que tem muitas apostas certas aí na sua tessitura, muitas mesmo.

Suas cartas, além de me transportarem para a sua leitura, me devolvem um texto já abandonado (porque dificilmente eu volto à leitura de qualquer texto aqui...um ou outro eu só retomo ao acaso ou por alguma atividade muito objetiva. Senão, estariam para sempre esquecidos). E o exercício da leitura é...inusitado. Se eu tivesse pudor ou o mínimo de exigência que tenho como leitora (dos outros), talvez a recuperação dos textos fosse constrangedora, mas não é e, então, percebo o quão pouco exigente tenho sido.

Eu não sei dizer se o final é de todo uma confissão desesperançada, talvez um pouco cética, mas parece que há uma fina esperança, porque a moça diz: Esse ano, diferente, como os outros". Há no cotidiano repetido, a sempre presente, possibilidade de um golpe (positivo ou não do destino), um sopro mais intenso que pode derrubar uma estrutura que abriga ou uma barreira que impede...não sei...

Também adoro Penélope (por sua estética física e artística) e a escolha do trecho do filme de Almodóvar (um dos meus cineastas favoritos), que fala sobre uma não-morte, parece-me uma elegia ao tempo, aos anos passados que estão logo ali.

Grata pela tão agradável companhia de sempre e pela paciência com os textos e tudo mais.

Mas, por favor, não morra em 2018...temos muito o que fazer por aqui. E, se mortos, fiquemos como o fantasma ativo de Carmem Maura em Volver...rs
Abraços,
Amanda