sábado, 9 de dezembro de 2017

Eu sei quando a lua não me ilumina

   Eu sei quando vai dar errado. Não sou menos ou mais esperta por isso, só sei.  Em frente ao mar antes mesmo de uma onda se formar, eu sei exatamente onde ela se quebrará. Que é violenta, incontrolável, densa e que vai me levar até ao fundo, me puxará até à superfície e depois de ter me arrastado até alto mar, vai me abandonar. Eu sei porque um anjo terno e muito discreto, senta-se ao meu lado, enquanto ainda estou na praia, e sussurra numa voz melodiosa e exata:
- Não é. Não vai dar pé.
  Ouço sua voz de calmaria, amoleço um pouco, ameaço segurar nas suas asas e pedir que ele me leve, mas não chego nem a olhá-lo nos olhos. Continuo; reta, definitiva e entregue, meu corpo encontra a água, segundos depois do meu pensamento ser dela. Eu sei quando vou me afogar.

  Eu sei quando vai chover, o céu denuncia, o vento traz a notícia; antes da chuva o seu cheiro em anúncio. Nuvens cinzas, cheias de decisão de queda; rajadas de ar balouçantes, árvores comemorando a vinda da visita; luzes e barulhos antes da sua chegada. Eu sei quando a precipitação se aproxima da minha rua,  mas arrisco-me ao deixar as janelas abertas, a porta da varanda fechada para o gato, as roupas no varal. Lanço-me sem bote, sem salva-vidas, sem um guarda-chuva forte a toda possibilidade de aguaceiro. Eu sei quando uma tempestade virá para molhar meus livros, tapetes, sofá, camisetas, calças jeans e os pelos cinzas de Otelo.

  Eu sei quando não aperto bem a mangueira do gás de cozinha, porque coloco um pouco de sabão no encaixe e vejo uma bolha mínima quase se formar, mas limpo a espuma antes de qualquer certeza. Fecho a cozinha, sob a ameaça de uma explosão, continuo plácida, organizada e resignada a mover as engrenagens da secreta vida doméstica no apartamento que é meu reino. Eu sei quando o gás não está seguro, mas deixo o cheiro invadir os corredores do prédio e algum vizinho vir bater à minha porta, cansado, entediado e ríspido com o meu descuido. Eu sei quando não estou segura e só fecho a porta da cozinha, atrás da minha suspeita. O perigo que não vejo, não me abate.
  Eu sei quando o fogo queima. Em frente a fogueira, eu vejo cada pedaço de madeira ser tomado pelo fogo laranja e vermelho, ser consumido em poucas horas e virar um amontoado de pó cinza desvalido; ainda assim, eu deixo as labaredas tocarem os meus pés. Eu sei quando sou uma ameaça e também sei quando vou ser queimada.

  Eu sei quando as frutas não estão na época, mesmo assim, deixo o feirante me enganar. Ele é quem aperta, mostra o lado mais rosado da fruta e a embrulha para eu levá-la para casa. Nega-me um desconto, porque melhor do que esta não vou encontrar, ele diz. E eu volto para casa com uma fruta fora de época e o desejo de tocar com a língua o doce e o macio de uma fruta que é ainda não é para este tempo. Chego em casa, descasco a dureza que a encobre e descubro que não tem doçura, maciez e, tampouco, é palatável. Volto suada, com menos dinheiro e desacreditada dos homens da feira. Eu sei quando sou enganada, mas deixo-me iludir.

  Eu sei quando tudo irá desmoronar.  Vejo as vigas tremerem, o reboco ceder, sinto o cheiro dos tijolos e do cimento que não foram capazes de sustentar uma construção; mesmo assim, eu fico sob o teto instável, suspeito e exposto. Porque a casa não vai mais embora de mim.
 Eu sei quando estou vazia, mesmo assim fico parada na porta, dizendo a quem entrar:
- Bem, muito bem sim. Obrigada
  Obrigada o quê? Bem, como? Mas como explicar uma falta sobre a qual nem se compreende. Alguém que foi embora, uma morte, mãos que se soltam em uma multidão, desencontro por causa de um atraso no voo, aparelhos desligados, desistências antes do caminho, tudo isto sabe-se o que perdeu ou que não se teve. Mas um vazio sem nome, sem data na agenda, sem marcas de lágrimas no papel de aviso, não é nada; ou é, sem ser. Eu sei quando o teto vai desabar, sei quando há um espaço de ausência, num lugar que se recusa ao eco, mesmo assim eu não abandono o lar falido e não me ocupo da ausência sem nome. 

  Eu sei quando a lua não me ilumina, sinto a distância continental entre a sua luminosidade e a minha pele; admiro o seu halo redondo, resplandecente e não sou capaz de alcançá-lo nem com o coração. Vou dormir no escuro interno, sem medo, sem nem chorar uma vez. Mas, antes, programo o timer das luzes de natal lá fora e alguma coisa vai brilhar depois das dez.
  Eu sei quando um sol se apaga dentro de uma pessoa e quando eu só tenho pernas para ir ao seu socorro, ainda assim, eu corro. Dou o que tenho. Eu sei quando estou no completo breu e preciso ir para cama sonhar com a luz e sei, também, quando alguém se apagou e eu só tenho um pequeno fogo inútil para encontrá-la, mesmo assim eu vou.

  Eu sei quando o futuro chega, vejo as casas sendo demolidas, assisto aos prédios ganharem as alturas, sinto mais os joelhos na corrida e vejo o quanto os cabelos perto da nuca embranqueceram.  Mesmo assim, me sento na poltrona de estampas desbotadas, agarro o álbum de fotografia mais antigo e já amanheço, encolhida, noutra época, noutro ano, noutra aurora alaranjada. Mesmo assim, não troco de roupa para o outro ano, não mudo o perfume nem compro uma poltrona nova ou chamo o estofador para um orçamento.
  Sigo sabendo, eu não me salvo por saber. Eu também não explico o que eu sei, porque é um saber muito empírico. Eu sei quando a lua não me ilumina, mas mesmo assim, eu continuo a sair à noite, a voltar para casa de luzes apagadas e a encontrar o buraco da fechadura da porta, cujo teto instável me protege de não ser apagada na minha própria escuridão.






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