quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Devolva a minha letra, o meu nome e o marcador de páginas

  Não combinaram os astros, os planetas regentes, os itinerários astrais, tampouco os terrestres. Não sincronizaram os nossos passos, não comunicaram as nossas rotas. Eu esperava de um lado e você se atrasava, vindo de outro; você começava uma música e eu continuava com outra letra. Desafinamos. Desatamos em linhas que pareceram muito frouxas desde não sei quando. Mais uma história que ninguém conta.
  Não dividimos os pertences, nisto estivemos compassados.
- Cada um guarda o que é seu e no que tivermos dúvidas, perguntamos.
Nisto eu confiei, mais do que em qualquer outra palavra sua. Mas, nisto, perdi meu livro daquela escritora italiana. Queria que me devolvesse o livro. Nada demais. É só porque tem a minha letra, uma resenha breve de cada conto nas duas últimas folhas e verso da capa e um marcador de página antigo, que estava com ele quando comprei. Está escrito Débora no marcador, olha aí, mas é meu. Veio com o livro que comprei usado.
  Devolva o meu livro, que eu devolvo o seu par de meias que eu trouxe por engano.

  Não operaram milagres por nós dois, nem seu evangelho nem minha mãe do terreiro nos salvaram do desencontro final. Nenhum santo, nenhuma metafísica,  nem ato de contrição ou novena,  nenhum céu, nenhuma história budista  nos ensinou a continuar. Nem Cosme e Damião nem Iemanjá, ninguém intercedeu pelo nosso lar. Nem o pajem com alianças, nem o pajé com as suas ervas e as nove luas puderam nos fazer dois em um. 
  Se devolvesse a minha fé, eu devolveria cada uma das suas dúvidas, que eu trouxe junto com as suas meias.

  Não descobriram a cura, nem remédio ou vacina. Não detectaram nenhum sinal de anormalidade. Não convocaram uma junta médica, não houve prescrição de  terapia que nos poupasse dos traumas. Não marcaram consultas de controle para a cada três meses, não auferiram  nossas pressões nem mediram a glicose. Não pediram tomografia das nossas cabeças e nenhum teste cardíaco, quando abrimos a porta pela última vez. Não se ocuparam em pensar em nós, ninguém ofereceu uma cirurgia corretiva ou, pelo menos, uma anestesia ou morfina para que fizéssemos a passagem sem dor.
  Queria que devolvesse a minha alegria de natal e eu devolveria seus gostos musicais e cinematográficos, que eu escondi dentro de um dos pés da meia.  

  Não descobriram estrela que mudasse os nossos destinos do mapa. Nenhum planeta novo que mudasse nossas regências. Nenhum eclipse aconteceu no último dia, nada que nos impedisse da última palavra, que nos chamasse à rua, que nos deixasse estupefatos e de susto, por medo, nos perdoássemos e resistíamos. Nenhum cometa, nem superaquecimento das águas, nenhuma mudança brusca nas marés; nada. Nem choveu, acho.
  Quero devolver seus elogios, porque soam como cobrança, uma pressão por ainda não ter sido o que você disse que eu era. E você me devolve a solidão completa, a liberdade de não me sentir em débito com o sentimento de outra pessoa. E, é claro, o par de meias irá junto, num só pacote.

  Não nos deram o bebê que planejamos. Não perpetuamos nossa espécie dissonante. Não fomos ao pediatra nem acordamos de madrugada embriagados de amor e sono. Não nos encantamos com os olhos de alguém feito de nós, não nos sentimos desesperadamente responsáveis pela vida de uma outra pessoa feita de nós. Não decidimos um nome, não compramos um berço, não fomos à praia antes das dez da manhã ou choramos quando uma voz pequena balbuciou as primeiras sílabas. Mesmo assim, não nos despedimos estéreis. 
  Quero devolver seu choro intervalado, que eu ainda escuto, quando atravesso uma noite muito longa. E queria que me devolvesse as minhas duas mãos que se entrelaçavam no seu pescoço todas as vezes em que você se salgava; eu preciso que elas me entrelacem agora. Do par de meias também não me esqueço.

  Não fundaram um novo lugar, não criaram ainda um outro modelo de sociedade, que coubessem os nossos sonhos. Não nos tornaram menos individualistas, menos consumistas, menos egoístas, menos ressentidos, menos infelizes ou menos competitivos. Não socializaram o nosso amor; capitalizaram-no e venderam-no a um valor que não pagaria nem os nossos sapatos que usamos para ir embora. Fomos demitidos de nós, porque não produzíamos em larga escala a um custo baixo.
  Quero devolver os cinco quilos que ganhei, enquanto estivemos juntos e um par de meias velhas, que ficaram entre as minhas coisas. E queria muito, se pudesse, que me devolvesse o meu sono pesado e a minha energia matinal para ir para a natação todos os dias.

  Não fizeram por nós, o que nós não conseguimos. Ninguém apareceu quando eu liguei para o resgate, ninguém recebeu os nossos bilhetes escondidos nos pacotes de pão, ninguém suspeitou que éramos um desastre natural silencioso e lento e que um dia irromperíamos na sala; civilizados e feridos.
  Quero devolver a amoreira que plantamos juntos no sítio dos meus avós. Eles morreram, venderam o sítio e a amoreira só se espalha. Quero devolver os seus planos futuros, que ainda tento acompanhar mesmo de muito longe; eles nunca me pertenceram.
   Por um acaso, o meu livro sobre a rua amarela ainda mora na sua prateleira? Se estiver com você, devolva. Devolva a primeira página com o meu nome, data e cidade, a minha letra, meus pensamentos,  a minha leitura e o marcador de livros da Débora, que é meu há muito. Se quiser o par de meias eu os tenho em meu poder, devolva o livro e ninguém sairá mais ferido.



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