terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Tão latente quanto os campos de papoula em Mianmar

  Duas e vinte e dois, o gato sobe no telhado da varanda, não há ninguém em casa; há cinco anos a
porta está fechada. Um carro velho fica a cada ano mais enferrujado na garagem da qual ninguém parte ou estaciona. Só a goiabeira, cujos galhos escapam entre as grades de ferro, não parou com a partida dos moradores; ela continua verde, produzindo frutos, que eu mesma já roubei na última estação. Não sei como sobrevive sozinha, independente, no jardim sem flores e mato alto, da casa abandonada, quase à beira do asfalto da avenida mais movimentada da cidade.
  Duas e vinte e três e o gato está na parte mais alta do telhado frágil. O gato velho, amarelo e quase cego desafia a instabilidade de um habitat inabitável. O gato teimoso, meu dono, testando o meu amor mais uma vez; explorando a cobertura de um lar, submerso em teias de aranha e mato. Antes tivesse subido na goiabeira, que eu já alcancei outras vezes, em dois ou três, talvez, roubos de goiaba. Mas no telhado, como resgatá-lo?

  Duas e vinte e cinco, eu não quero chamar a atenção, ligar para os bombeiros, solicitar resgate nem mostrar aos vizinhos que o gato, a quem levo para vacinar, fazer curativos e se recuperar de alguma queda na clínica veterinária está no alto mais alto da casa prestes a ruir.  Enquanto rejeito a possibilidade de qualquer ajuda, o gato caminha, pisa elegantemente sobre cada conexão do meu sistema nervoso. Passa pelos nervos raquidianos,  avança até os cranianos, descansa um pouco sobre  o bulbo e já parte para o cerebelo.
  Duas e vinte e seis, eu solto meu primeiro grito, seguido por mais dois e um terceiro que seria definitivo; se eu não me humilhasse tanto.
  Duas e vinte e sete e o gato me olha, me encara, mostra que sabe de mim, mas não obedece, continua a ganhar altura e risco.

  Duas e vinte e oito, eu  me lembro da nossa relação sempre conturbada - ele só pode ser de áries -  O gato amarelo sempre fez o que bem quis, desde o primeiro dia que entrou no meu apartamento: sujou, quebrou, despertou, arruinou, afugentou, escravizou, fugiu, voltou, trouxe goiabas também roubadas - por essas eu nunca chamei-lhe a atenção, porque também as roubei.
  Duas e vinte e nove, eu grito mais uma vez o nome que eu lhe chamei e desde o primeiro minuto ele atendeu. Um gato velho com um novo nome e ele pareceu gostar. Um gato que assumiu uma nova identidade quando entrou na minha sala, carregado por alguém que já não vejo mais. O gato era dele, mas foi ficando e se tornou meu; meu dono. Como o farei descer, se os gritos não o comovem? Nunca o afetaram. Posso chorar, implorar que ele faça ou não faça algo e ele não atende. Mas se me sento com o olhar perdido, se choro enquanto coloco cadarços no tênis ou se fico algumas horas, olhando para tela do celular que não se ilumina, ele vem logo deitar no meu colo. Mas e agora, no alto da casa onde ninguém ama, toma banho, discute a relação ou ri de uma piada na TV; como ser discreta e resgatar o gato amarelo? 

  Duas e trinta, o dono da banca de jornais se aproxima e me pergunta se eu preciso de ajuda.
- Meu gato (minto, claro, porque ninguém no mundo o tem ou o teve) subiu na casa.
Ele aperta os olhos sob o sol, constata a arrogância cega do felino e sorri.
- Gato é esperto daqui a pouco desce e se cair, tem mais seis vidas.
Não tem, não tem. Quando iluminou minha sala, o gato já cicatrizes, cirurgia, acidentes, quedas. Talvez seja a última vida dele e eu completamente desamparada de auxílio.
  Duas e trinta e dois, dou um quarto grito, ameaço chamar os bombeiros, duas cabeleireiras saem do salão e me oferecem um copo com água e conselhos.
- Deixa, boba. Vale a pena não. Fica calma, relaxa, o telhado da casa é mais firme que qualquer prédio desses aí. Não parece mais é. Ele deve ter subido por trás, tem um muro alto, largo, daqui a pouco desce por lá.
  Mais algumas pessoas se aproximam: o motorista de táxi, a funcionária da padaria, duas mulheres que eu nunca tinha visto, o homem da banca voltou, as cabeleireiras trouxeram água. Chamo a atenção que não gostaria. Sou um campo de arroz chinês, decorado, que era só para ser uma atração local e se espalha. Sou como as plantações de papoula em Miamnar, que  crescem em proporções indisfarçáveis.

  Eu amo o gato e o medo de perdê-lo grita na avenida mais frequentada da cidade. Alguém sugere uma ligação para os bombeiros. Tenho vergonha, não quero incomodar homens sérios e ter que explicar-lhes que o gato amarelo, velho e quase cego é o meu incêndio particular e já quase fatal.  
  Ligo para os bombeiros; eles virão, de repente, o gato desce, rápido, despreocupado e tão vigoroso quanto o pé de goiaba da casa. Passa por mim e vai para o seu apartamento, cujo aluguel sou eu quem tento pagar mês a mês. O pequeno grupo solidário se desfaz, antes riem de mim, fazem piada e eu sorrio aliviada e vermelha, ligo para os bombeiros e eles têm tempo de suspenderem a vinda.

  Duas e cinquenta, volto para casa e trago uma goiaba verde no bolso, não discutirei com o gato. Mas evitarei a avenida por alguns dias, por vergonha e porque a época das goiabas já passou. O gato amarelo já me indispôs com um ou dois vizinhos, já me fez desmarcar uma viagem de réveillon, quando caiu da sacada, depois de cortar a tela; já me lembrou de todos os que o seguraram, inclusive os braços que me deram a ele, e nunca mais voltaram.
  Mas, principalmente, o gato amarelo me habitou, quando eu também submergia em teias de aranha e grama alta. O gato velho, quase cego, alcançou meu telhado instável e pisou macio em cada medo meu. O amor é discreto até o fim se aproximar. Ninguém sabia que o gato era meu dono, até ele quase ir embora. Eu nunca pedi ajuda, até suspeitar que seria tão abandonada quanto a casa que o gato escalava.

  Meu amor mais indiscreto do que os campos de papoula em Mianmar. As patas felinas mais iluminadas, translúcidas e redentoras do que as das madres de Calcutá.
  Três e três, o gato amarelo me circunda, enquanto eu olho para o meu medo e resignação pousados na tela da varanda, pula no meu colo e os invasores se espantam e voam para longe.
  Três e quatro, somos eu e o gato na sala, sem a suspensão da vida numa casa, sem automóveis enferrujados na garagem,  sem as vozes desesperadas por uma partida, sem copos com água, sem explicação para bombeiros sérios.
  Às vezes, amar, é assistir a um passo cego e não alcançar a tempo de  mudar a direção. Às vezes, amar, é não desistir, mesmo de longe, entregar-se a busca e sujar os dois pés na lama; entrar de corpo inteiro em um rio de água turva e desconhecida; não poupar a voz, o choro, o medo e também não paralisar em nenhuma espécie de abandono. Produzir goiabas, mesmo depois que as vozes foram embora, ampliar os galhos e servir a ladrões e gatos, como se eles fossem os donos da casa; afinal, foram eles que restaram.
  Às vezes, amar, é um campo de papoulas em Mianmar, bonito e para sempre arriscado ou de arroz colorido na China, inesperado e profícuo.




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