quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Como são deliciosas as tâmaras que eu nunca comerei

   Como são solares as fotos daqueles que não conhecemos. Usam maiôs e biquínis vermelhos e marinhos, quando desfilam tranquilos na orla do Rio ou Saint-Tropez. Como são azuis os céus que esses desconhecidos felizes têm sobre a cabeça; nenhum avião, pomba ou nuvem, roubando a atenção dos seus corpos dourados. Seus drinks refrescantes, os desenhos na areia, o sorriso espontâneo; registro flagrante. Como são fotogênicos os anônimos que aparecem na tela do meu celular. Seus chinelos estampados, combinando com a roupa de banho, sujos da areia mais branca. Que sol, que amarelo, que cores!
  Como são solares esses turistas do mundo e seus espelhos sem manchas, seus banheiros organizados e armários sem portas.
  Como são sensuais as mulheres que eu não encontro no dentista. Seus decotes vertiginosos, seus vestidos floridos e fluidos, suas baguetes nas cestas das bicicletas em ruas de pedras e os seus cortes de cabelos assimétricos com chapéus ou coques despojados.
  Como são gentis os homens que não falam a minha língua. Seus cumprimentos corteses, seus sapatos brilhantes, portas abertas e flores compradas numa banca, na volta para a casa.

  Como são calmos os moradores do outro lado do mundo. Os ingleses e os seus chás da cinco, seus reis e as discussões políticas sobre as diretrizes dos seus primeiros ministros e parlamentos; os franceses e o seus cafés em xícaras, seus romances de muitas páginas e os cigarros entre os dedos, como extensões da própria alma; os indianos e os seus templos cheios de deuses híbridos, suas cores brilhantes, seus asanas de ioga, pranayamas e nyamas; os portugueses e as poesias vindas e soltas no mar, de Fernandos e Sophias; os japoneses e o seus butôs e as suas cerejeiras em flor uma vez ao ano. Hanami, toda a beleza; como ser infeliz depois das flores em maio?
  Como são libertos os leões das savanas africanas. Seus pelos eriçados e dourados, seus olhos cor de mel vislumbrando lonjuras alaranjadas, suas patas seguras e suaves, suas caças, matando suas fomes e os seus banhos de muitas águas.   

  Como são harmônicos os jantares familiares dos parentes que não são nossos. Mesas grandes de muitas cadeiras, banquetes fartos de muitos pratos. Histórias, memórias e gracejos partilhados, nenhuma ofensa é maior que o afeto. Seus vinhos, seus abraços, suas fotos antigas, seus velhos enrugados e dóceis e crianças de rostos redondos e alegres. Suas risadas, seus sucessos comemorados, seus fracassos perdoados. Consolos, comidas, corações, celebrações, caras, cartas, confissões. Como são limpas as toalhas de linho brancas dos jantares dessas famílias.
  Como são compreensivos os outros que não conhecemos com os outros que também não conhecemos, suavizam ausências, desculpam os erros, resolvem quaisquer diferenças entre olhares e mãos sobrepostas.

  Como são tranquilas as questões que não nos dizem respeito; superficiais até. Um coaching, um spa, um plano de negócios, uma terapia familiar, intenção na novena, uma lista de metas ao início de cada ano, determinação e força de vontade resolvem os conflitos  interiores  e dramas superestimados dos estranhos.
  Como são leais, fotogênicos e bem humorados os amigos que não são nossos. Sempre presentes, sinceros e afetuosos, dispostos a ouvirem suas dúvidas e clarear ideias a qualquer hora do dia, noite, feriado ou dia comum.
  Como são generosos e abdicados os amigos dos amigos que desconhecemos. Não fazem cobranças, não apontam as fraquezas, não tecem críticas e concordam entre si em qualquer assunto ou posição. Nenhuma mágoa, nenhum rancor passageiros.

  Como são fantásticos os parques públicos distantes das nossas casas. Arborizados, acessíveis, preservados, seguros, amplos e com uma infinidade de possibilidades. Suas crianças são mais ativas, os balanços fazem menos barulho, as flores colorem sempre, os beija-flores são hóspedes mais constantes, os namoros mais ternos. 
  Como são obedientes e saudáveis os cães e gatos que nunca passaram pela nossa cozinha. Não têm carrapatos, não recusam banhos, tosas, medicamentos ou afagos. São sempre acessíveis, companheiros, nunca fogem das casas dos seus donos e respondem sempre os seus chamados, na primeira hora. 

  Como são perfeitos, estéticos e eternos os amores que não nos amam. Admiram os seus pares, rompem com quaisquer preconceitos, mergulham no cheiro, pele, carne, alma e passado dos seus amantes, experimentam intensamente o momento presente e planejam futuros partilhados e grandiosos juntos.
  Como são sintonizados, sempre, os casais dos quais não fazemos parte. Querem um mesmo destino, têm os mesmos sonhos, vestem cores que se complementam, tomam num mesmo copo as bebidas que ambos gostam, desde sempre. Nenhum esforço de compreensão, desapego, abertura ou desafios porque são feitos de uma mesma matéria as almas gêmeas que não são nossas; dançam os passos sincronizados de uma mesma trilha. Nunca duvidam dos sentimentos do outro ou dos próprios, são sempre seguros os casais que atravessam a rua juntos.

  Como são deles a vida que não é nossa. Nossas fotos não-solares, nossas férias banais em Sana, sem registros públicos, nosso céu nublado por cinco dias consecutivos, as mulheres de jeans e cabelos com frizz no consultório do dentista, os homens com camisas molhadas de suor e desatentos da porta do elevador que quase nos espreme.
  Como são nossas as vidas que não interessam a ninguém. Nossos governos corruptos e caóticos, nossas capivaras, dormindo às margens do rio, nossas famílias disfuncionais em jantares que acabam antes da sobremesa, nossas questões filosóficas intensas que adentram noite afora e nunca se iluminam, nossos amigos que se afastam, somem e, um dia ,voltam; os nossos parques pichados com os balanços quebrados, onde tomamos um sorvete e sonhamos com outros jeitos de viver, nossos gatos arredios e nossos cães que latem muito alto.
  Como são genuínas as vidas que não se estetizam. Nossos amores complicados que nos ensinam, as novas perspectivas, referências e experiências diversas que nos ampliam, mas antes, rasgam algumas vezes o nosso peito até caberem.
 Como são deliciosas as tâmaras que eu nunca comerei. Como são autênticas as laranjas que eu experimento depois do almoço; nem sempre doces, mas são as melhores frutas que a minha boca alcança e eterniza.




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