segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Acontece de o coração se quebrar e a gente sair para comprar pão

  Os feriados acontecem; mesmo nas férias, mesmo quando se está desempregado, resfriado, de luto, mudo de apreensão, endividado, quando chove ou não temos para onde ir, mesmo assim os feriados vêm. Independente dos nossos calendários particulares, eles acontecem. Se temos uma resposta para dar, uma doença incurável cujo diagnóstico acabamos de saber, uma despedida dolorosa ou uma chegada inesperada, os feriados vêm, não esperam nenhum tipo de recuperação ou disponibilidade. Os feriados instalam-se em dias comuns, no meio da semana e atropelam qualquer expectativa de perfeição. Chegam com o céu cinza, ignorando as unhas de esmaltes descascados, o cabelo embaraçado, o short de malha antigo, com manchas de outros dias.   Chegam mesmo se o interfone não estiver funcionando, se não tiver comida na geladeira, se a chave do apartamento estiver dentro da bolsa e a bolsa dentro do armário. Chegam se o noticiário mente, se a novela é a mesma há trinta anos, se a seleção não jogar, se meu avô tiver morrido na tarde anterior, se eu estiver insone há três dias, os feriados só chegam. O mundo e a sua rotação que não sabe de nós.

  Acontece, quando criança, de trocarmos os pés dos sapatos, o direito tentamos ajeitar no pé esquerdo e o pé esquerdo fazemos caber no sapato do pé direito. Levantamos, damos os primeiros passos desequilibrados, um tanto, até que um adulto observa a cena, sorri e adverte o pequeno humano do erro,  manda trocar. A criança olha para baixo, encara os pés e não vê defeitos: um pé e um sapato, outro pé e outro sapato. Mas obedece, porque foi um adulto quem disse. Às vezes tira os dois sapatos e os coloca da mesma maneira, o adulto corrige, a criança estranha, mas de novo, tenta trocar. Uma, duas, três tentativas e o sapato do pé direito no pé direito, o esquerdo no pé esquerdo. Parece a mesma coisa, mas o adulto não repreende, então sai correndo com os sapatos certos sem nem saber.  Andar é mais difícil do que podemos nos lembrar.

  Acontece de a gente pedir desculpas sem nem sabermos o porquê. Da porta escapar da mão, do vento ser mais ágil  e, por causa do barulho, pedirmos desculpas para ninguém. A sala vazia, a porta é a da nossa casa e os dedos que correram o risco serem os nossos. Acontece de justificarmos demasiadamente uma decisão com argumentos inventados, quando devia bastar dizer se sim ou se não. Acontece de a gente não pedir desculpas por não achar justo sermos perdoados. Infligir uma sentença definitiva ao próprio crime; juiz e sentenciado sem nem apelação ou recurso. Acontece, inclusive, de carregarmos caminho afora os pesos das culpas que criamos, pelo costume de não sabermos andar com as mãos vazias. Quanto mais distantes da juventude mais sacolas nos habituamos a levar.

  Acontece de a gente não querer, mas achar que deve ficar. Matar a culpa antes da culpa vir. E se não se recuperarem da nossa ausência? E se não nos absolvermos da ferida provocada? E se?
Acontece de a gente querer e não ficar, porque as asas do outro só aprendem a liberdade depois de verem as nossas baterem. Abrir as paredes do mundo é um amor sublime.
  Acontece de erramos a porta, achar que deve durar o efêmero; tratar como passagem o que nunca mais desgruda. Acontece, inclusive, de batermos duas vezes na mesma porta errada, como a criança, colocando os sapatos. 

  Acontece de a gente esquecer a data, o nome, a ordem dos acontecimentos, acontece de a gente esquecer o endereço, o ponto que devemos descer, a bolsa no supermercado, o nome do remédio, o caminho da própria casa.
  Acontece de sermos nós de quem se esquecem, o nosso nome o não lembrado, o nosso gesto, o nosso rosto não serem mais familiares e as nossas memórias comuns serem devolvidas a nós. É doloroso perder-se e também sermos perdidos, mas alguém ainda, enxergará o farol. Mesmo esquecidos não vamos embora até a onda quebrar-se completamente e diluir-se em espuma branca na areia escura da noite.

  Acontece de a gente não saber se corre mais ou espera a chuva passar em algum lugar seco. Arriscamos a corrida debaixo da água ou confiamos o nosso tempo ao tempo da natureza? Raios e relâmpagos também não sabem da nossa existência.
  Acontece de o liquidificador estragar quando as frutas já estiverem cortadas dentro dele e submersas em água. Acontece de não termos o suco exatamente na hora que gostaríamos e de termos que resgatar cada pedaço de fruta de um copo imóvel. Uma pesca tropical ao meio-dia, na cozinha silenciosa do apartamento cheio de memórias. 

  Acontece de um trator derrubar as últimas paredes da casa da nossa infância e não estarmos lá para impedir; e se estivéssemos, não termos nada a fazer.
 Acontece de o coração se quebrar e a gente sair para comprar pão, porque o universo seguirá o seu curso, se estivermos deitados ou não; partidos ou não. Porque os feriados estão por vir, os pés ainda procuram os sapatos certos debaixo da cama e, na pressa, às vezes, se confundem. Porque ainda pediremos desculpas pelo atraso que ninguém verá no seus relógio, ficaremos na turbulência e partiremos na calmaria, por insegurança e amor.  E ainda veremos os esquecimentos  transportarem as nossas memórias para um outro lado, sem nem nos comunicarem. Acontecerá de nos molharmos em movimento ou ficarmos secos, esperando o tempo de atravessarmos o medo. Acontecerá, ainda, de o liquidificador estragado ser a memória mais terna dessa cozinha que, um dia, irão demolir. O pão nos espera, a dor pode nos acompanhar até à padaria, dentro do sapato esquerdo ou do direito, tanto faz, não há lugar errado nem certezas.



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