sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Santa guerreira contra o dragão da dúvida

  Primeira manhã do ano, estranho silêncio de feriado pós-festa. É segunda-feira, mas parece a primeira quinta depois do carnaval. Silêncio duradouro dos que dormem, mergulhados nas profundezas oníricas, dos que se recuperam dos excessos: de álcool, ritmos, desejos, sabores, promessas, dos mil perdões antes da meia-noite. Ausência de movimento e vozes dos que acordam, mas se viram para o outro lado e voltam a dormir, dos que procuram o celular, sem nenhuma mensagem nova, por um hábito adquirido há menos de uma década, mas já entranhado e que, sem novidades, também retomam o sono.
  Os cães também não latem, exaustos pelo prolongado medo dos fogos, o portão da garagem não se abre ou fecha, ninguém chega ou sai, o prédio na primeira manhã do ano é um sereno repouso coletivo; ninguém chama, ninguém se move; nenhuma urgência ou pressa.

  Primeiro dia do ano e eu quero me levantar sem cerimônia, não sei se posso. Já me virei na cama algumas vezes e inventei continuações para as partes de sonhos dos quais eu consegui me lembrar, mas o silêncio perturbador da manhã do dia primeiro me tira da cama. Sem  rituais, vou ao banheiro, lavo o rosto do ano passado, seco com a toalha que troquei na última noite do ano que acabou; o sabonete do ano novo sai do mesmo vidro do ano que não é mais.
  Cuidadora do sonos alheios, piso macio no chão e procuro uma leiteira sem fazer barulho. Pó, lata de açúcar, filtro de papel, tudo em silêncio. Meu primeiro gole de café, do ano recém-chegado, é cuidadoso e solitário. Visto a roupa, calço o tênis com a mesma diligência de um dia comum de qualquer ano, quero pisar com os mesmos passos de ontem a avenida que, possivelmente, ainda sonha com o ano que começa. Passo na cozinha para mais um gole de café e há um outro alguém desperto, sussurramos um bom dia e ele me pede para esperá-lo. A manhã de ano novo, sem rituais, me dá a novidade da companhia.

  Descemos as escadas em silêncio, nos alongamos e, logo, inauguramos a avenida calada com os nossos pés sonolentos. O primeiro dia de um ano numa avenida quase vazia. Bem poucos podem testemunhar a nossa disposição, há somente uma padaria, uma banca de jornais, dois supermercados abertos e o bar da esquina com um grupo de homens que bebem no balcão e, na mesa do lado de fora, um homem sozinho despeja a cerveja no copo. Dois cães marrons, sem latir, perambulam pela calçada, cheiram restos da festa da noite anterior, um gato na janela do apartamento, em cima do mercadinho, se estica e  um ônibus sem passageiros trafega sozinho pelo asfalto inteiro. Esta é a minha visão, a da minha companhia eu não sei, talvez seja completamente diversa, ele tem vinte centímetros a mais, vira bem menos o pescoço enquanto caminha e não sorri, quando o observo. Eu acho que sorrio, algumas vezes.

  Atravessava a penúltima rua, quando escuto alguém me chamar, a desconhecida se aproxima, eu vou diminuindo a intensidade da caminhada e espero que ela me alcance. Já me aborda pedindo desculpas, sorri e coloca as mãos na frente dos lábios. Tem um rosto de loucura generosa, de bondade, uma mansidão na voz. Olhos de ternura e medo. Meu primeiro encontro do ano; dia um do ano que começou à meia-noite. Lenço estampado de flores pálidas na cabeça, um anel em cada dedo das duas mãos, unhas curtas, sem esmaltes, corpo franzino e voz de calmaria. Diz que está perdida e abaixa os olhos constrangida pela sua condição. Quer saber de um cruzeiro.
- Tem um por aqui, não tem?

Em frente à igreja de São Jorge, empunhando um ramo de alguma coisa verde. Dedos longos, ornados por anéis brilhantes, que falam tanto quanto as palavras que saem da sua boca, eu caminhando uma mesma rota de muitas anos, ela sem saber o exato destino da sua busca.
 - Cê me desculpa, eu sempre vou lá, mas hoje eu não acho o lugar.
 Ela perdida, eu impedida de ajudá-la com a sua localização. A minha geografia é precária, as tentativas de prestar informações são quase sempre fracassadas, mas a minha vontade é profunda, embora desajeitada.
- Um cruzeiro, aqui? Eu nunca vi.
Eu tentando me lembrar de algum cruzeiro por ali e os olhos bondosos dela, esperando a minha memória se acender. Ela ansiosa pela promessa de uma fogueira redentora e eu sem conseguir alastrar sequer uma fagulha de luz quente.

  Começo a desconfiar do seu bom rosto, da sua voz macia. E se esse cruzeiro for de um outro tempo ou se ele nunca existiu? Se a mulher estiver enganada de ano, de lugar ou de sentidos? Se os olhos de loucura, forem de loucura genuína? Eu quero encontrar o lugar que ela busca, mas eu nem sei se ele é possível.
  Minha companhia, que já ia bem a frente, volta e tenta ajudar. Aponta para a banca e um táxi:
- Eles devem saber.
 Atravessamos com ela, mas não esperamos a resposta. Abandono a perdida e sigo com as minhas passadas antigas, mas continuo a olhar para trás, até o pescoço se recusar a virar mais, desconfiada da sanidade dela e arrependida da minha limitação. Avanço no trajeto, mas me paraliso na culpa pelo estado da desconhecida a quem não ajudei em nada.
E tão bons eram os olhos dela.
- Deus abençoe vocês.
Ela falou, enquanto a deixávamos. Nada me constrange mais do que um desejo forte desses, quando eu sou fraca com alguém.

   O cruzeiro, senhora, eu não sei onde fica. Estamos tão perdidas  e pedimos desculpas igual. Eu saio grávida de futuro de casa e já sinto o feto escorrer pelas pernas no meu primeiro encontro do ano.
   No primeiro dia e eu percebo que também estou perdida, mas não queria estar em nenhum outro lugar; que nativa estúpida eu sou. Logo eu, que na virada do ano pedi uma passagem só de ida, logo eu, que se pudesse faria as malas e me abandonaria sozinha no ano passado.
  Primeira manhã do ano e eu tão perdida de um cruzeiro, que eu não sei se existe, quanto a outra mulher; primeira manhã do ano e eu desencontrada de tudo o que corre na normalidade, duvidando da procura alheia.
   Voltamos à casa, agora menos silenciosa, tiro o tênis e me lembro do cruzeiro.
- Ele existe. Ela não é louca.
  Não conto à companhia, talvez ele não entendesse o meu compromisso de iluminar uma memória de caminho.
   Em frente à igreja de São Jorge, empunhando um ramo de alguma coisa verde, cavalgando numa montanha de candura, uma mulher luta contra o dragão que é vergonha de não saber chegar. Eu caminho sem destino, sem perguntas, enquanto ela se aproxima da sua busca, envolta pela dúvida exposta, mas com pudor.
- Duas ruas acima, vire à esquerda,  desce e entra na primeira rua à esquerda, de novo.
É lá o cruzeiro dela, que eu não soube apontar; finalmente o fogo! Para o meu, ainda não acendeu nenhuma faísca, mas seguirei tentando.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 16 de fevereiro de 2018

Querida Amanda,

Ler seus contos é sempre agradável. Neste, em especial, por citar a Igreja São Jorge, presumo que seja a Melquita - a igreja do disco voador. Fiquei encantado e curioso quando a vi pela primeira vez, há muitos muitos anos.

Vir aqui é um exercício de saudade, de refazer passos pelos caminhos da memória. Bem, dito isto e além disto, a crônica é muito agradável.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 16 de fevereiro de 2018

Caro Paulo,
que bom que a leitura dos contos é um momento agradável, fico feliz em ter alguma participação nessa experiência. Sim, exatamente, a igreja da qual eu falava é este inusitado templo.

Obrigada pela leitura. Faço votos de um ano mais esperançoso para todos. Abraços, ótimo final de semana.

Amanda