segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Calamos. E ouvimos o único som que interessa

  Regressamos. Incontáveis vezes a uma casa vazia para nos assegurarmos de que nada tenha ficado
para trás. Uma carta não lida, um caderno de receitas da família, um anel que não usamos mais, um recorte de jornal com alguma notícia que tenha mudado o nosso destino, um tufo de fios de cabelo do primeiro filho, uma moeda, um selo, parte de uma coleção que não temos mais ou, quem sabe, somente uma luz acesa num dos quartos vazios. Checamos atrás das portas, passamos as mãos sobre as muretas, os basculantes, portas e portais, olhamos, mais uma vez, para cada prego vazio e ainda tentamos nos lembrar o que mesmo ficava dependurado ali. Depois, fechamos janelas, portas e apagamos as luzes, deixando para trás o invisível que nos faltará numa madrugada de quarta-feira e que não lembraremos onde deixamos.
  Regressamos. Aos inícios das jornadas, esperando encontrar as mesmas encruzilhadas que recusamos, para retomar de um outro jeito, mas os caminhos são outros, impossíveis de serem reencontrados. Passada uma placa, ela se apagará e num desejado retorno encontraremos outra no lugar; as cartografias não são estanques.

  Repetimos. O prato favorito pelo qual a memória ainda saliva e buscamos o sabor de outro tempo. Acertamos o tempero, vamos ao mercado central da cidade atrás da especiaria que nunca compramos, calculamos as medidas, deixamos em fogo alto até levantar fervura e depois abaixamos o fogo, enquanto mexemos sem parar - há uma ciência nisso: o mesmo lado até engrossar, em círculos, nada de infinitos no fundo da panela. Apagamos o fogo, cobrimos o cozido e esperamos esfriar completamente, quando mergulharmos a colher na panela, levamos até à boca e o prato não é o mesmo. Recalcular as rotas não adianta, culpar os ingredientes é em vão, não passou do tempo nem foi prematura a retirada do fogão. Erramos outra espécie de tempo.
  Repetimos. As mesmas palavras, gestos, encadeados por lágrimas com o sal que é o mesmo, tentando salvar algo que foi perdido no choro anterior e só definido agora. 

  Corremos. Para não perdermos o ônibus, o início do filme, a primeira música do show. Penteamos o cabelo no caminho, jogamos um batom na bolsa, não respondemos a pergunta da vizinha para não perdermos o elevador. Esquecemos janelas abertas, a água do gato, o computador ligado e a última vez que saímos com calma. O ônibus passou mais cedo, as luzes da sala de cinema já estão apagadas e um diálogo forte já está sendo travado na tela e, depois de entregarmos os ingressos, escutamos o final de um refrão que reconhecemos.
  Corremos. Riscos ao escolhermos os sobressaltos, mas também se optamos pela calmaria. Corremos o mundo para encontrarmos o que sempre esteve debaixo da nossa camisa favorita, do cão que é mais dócil do que o nosso desespero, ao encontro de uma promessa vazia por medo de estarmos perdidos e sozinhos, corremos até não termos fôlego de sair à porta da cozinha e olharmos o céu de fevereiro.  

  Naufragamos. Com o barco recém revisado, pintado e polido. Completamente adequado sob o olhar dos especialistas, dos espectadores e dos condutores. Submergimos sem tempo de levarmos nada além do nosso próprio corpo e um colete salva-vidas. Vemos a vida que construímos não ultrapassar a primeira tormenta; e nem temos uma proa para sentarmos e chorarmos em cima dela. Antes, precisamos lutar em pleno mar aberto contra os raios, as ondas, a escuridão, os pulmões e braços que nunca, antes, experimentaram as condições extremas da escolha pela vida. 
  Naufragamos. Por um único nó que não conferimos, um botão que não apertamos até o fim; os detalhes nos afogam ou resgatam.
  Naufragamos na certeza, na confiança de um barco indestrutível e uma tripulação bem treinada e apaixonada. Agora, cada par de braços tenta encontrar um caminho que os leve à segurança, no escuro, na solidão do vazio, destituídos de planos e bússolas.

  Mentimos. Que passa, que passou, que nunca nos afetou para acreditarmos que não há peso nenhum a carregar. Conduzimos um novo par e tentamos não pensar na última coreografia que deixamos incompleta, antes de sairmos fugidos do salão. Não contamos uma violência a ninguém para que não nos lembrem com a solidariedade no olhar e a piedade na voz sobre aquilo que não pudemos esquecer.
 Mentimos. Porque também queremos acreditar na invenção que concebemos numa noite solitária de lua. Mentimos para fugirmos da pequenez da realidade, da agudez das tragédias cotidianas. Para sairmos mais cedo do trabalho e ficarmos mais tempo com o filho; para chegarmos mais tarde ao compromisso e ficarmos mais tempo na cama com o nosso amor. Ou inventamos uma desculpa para não falarmos ao telefone agora, não darmos uma resposta que não temos, para demorarmos mais quinze minutos no banho morno. Mentimos para viver ou para gostarmos mais de viver.

  Prometemos. A última vez, a visita na próxima semana, a viagem nas próximas férias, o último pedaço do chocolate. Mas não resistimos e voltamos ao vício, ao ócio, ao mau amante, ao costume que nos consome; falhamos na semana seguinte e na outra e na próxima, até as distâncias não serem mais conciliáveis, até não termos mais meios de encontramos o nosso necessário encontro; as próximas férias parecem próximas demais para organizarmos uma viagem, deixamos para a seguinte; o último pedaço de chocolate derrete entre os dedos, parece irresistível para cumprimos com a promessa de darmos a alguém, levamos à boca, sem culpa.
  Prometemos. Uma esperança, uma saída, um lugar onde os sonhos durem mais do que duas ou três noites, fidelidade, verdade, constância e resistência e se quebramos uma ou todas elas, não é por covardia, mas fragilidade dos ombros e falibilidade humana. Já não somos mais anjos, você se lembra? 

  Calamos. As vozes que ecoam dentro de nós, por medo, por amor a alguém que não nós, por não termos uma garganta que suporte a potência do grito guardado. Calamos para que o outro fale, nos submeta, nos engane, nos violente. Mas, também, calamos de coragem.
  Calamos. E não avançamos na discussão que só nos distancia da alma do outro, da nossa lucidez, mesmo que embriagada, das concessões que não faremos, da essência que ressignificamos com o nosso silêncio. Calamos e ouvimos as batidas do nosso próprio coração, que é o som que interessa, antes das vozes poderem sair. Não simulamos queda na jogada decisiva, partimos para o ataque até que possamos gritar tudo o que não conseguimos antes.



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