segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

O mais difícil sempre foi não saber o que fazer com as mãos

   O mais difícil da despedida não são as palavras que saem atropeladas nem os engasgos entre as
frases, não é o nó na garganta de choro e alívio.
  O mais difícil da despedida não são as lembranças ternas dos primeiros dias de morada, sobre as quais não ousamos falar no último dia.
  O mais difícil não são as lembranças dos primeiros temporais que se estenderam por dias, a roupa que não secava mais nem o cheiro do cachorro que voltava da chuva e parecia estar molhado há meses ou os dias em que abrir a porta era doloroso, quando se queria entrar e libertador quando não queríamos mais ficar.
   O mais difícil são os silêncios ao abaixarmos para pegar alguma coisa que ficou no chão depois de levantarmos um móvel pesado. Um marcador de página, um cartão do técnico da lavadora de roupas que nunca achamos, um bilhete de amor que um outro de nós escreveu num dia de felicidade.

  O mais difícil de ir embora não são as portas que deixamos bater atrás de nós, sem  a delicadeza da chegada, porque o síndico não está em casa, porque já passam das dez da manhã e porque não nos diz mais respeito nenhum arranhão na pintura, mola solta nas dobradiças, lascas na maçaneta ou fragilidade do vidro.
  O mais difícil não são as fechaduras novas que deveremos aprender a encontrar cada chave certa. Na pressa, na chuva, na iminência de um assalto ou abordagem de um desconhecido.
  O mais difícil é sair por uma porta pela última vez, enquanto o suor escorre, os vizinhos entram e saem, as curvas sinuosas do prédio que fica irritam e a geladeira não passa pela última porta, enquanto não deixam-na aberta.

  O mais difícil de uma partida não é o peso dos móveis antigos de madeira maciça, os mecanismos dobráveis dos novos, nem a noção de espaço cuidadosamente calculada; os frisos, as frestas, as arestas, o gesso, os detalhes da arquitetura art-déco do prédio que não podem ser sacrificados.
  O mais difícil não é equilibrar a pilha de potes de plástico, de livros, de discos, de mágoas enroladas em papel pardo ou a força e o jeito para atravessar cada obstáculo sem nenhuma lágrima.
  O mais difícil são as perdas inegociáveis, as cicatrizes divididas que doem mais do que se estivessem juntas numa mesma mala. Dores similares em lados opostos do caminhão de mudanças. 

  O mais difícil de uma mudança não são os livros que devem ser partilhados: olha o nomes, as dedicatórias, as dobras e marcações, o tipo de leitura de cada um. Isto é uma mancha de café ou mel? Na dúvida, encosta a página sob o nariz e aspira pela última vez o poema mais bonito. Que conhecimento nos escapou? Que livro não soubemos ler até o final?
  O mais difícil serão as memórias, as próximas histórias escritas sozinhas e sem o leitor paciente logo ao lado. Um livro de página marcada no criado-mudo, que ninguém viola.

  O mais angustiante não são os carregadores e os modos deles com a louça, a cristaleira de família e os fios do computador que não couberam na caixa. Não é a brutalidade com que tratam o armário da cozinha só porque está descascado e sujo, já era assim quando comprei. Era o passado de segunda ou terceira mão que eu quis na minha casa. Nenhuma suspensão ou medo com os espelhos e a possibilidade de sorte perdida nos próximos sete aniversários.
  O mais difícil de uma viagem de ida é descer as escadas com a fragilidade do peito tão exposta e não ter com quem dividir a responsabilidade de cuidados.

  O mais difícil não será decorar o novo CEP, as referências para entrega das compras feitas pela internet nem aprender em que parte da rua íngreme deve-se inspirar e expirar.
  O mais difícil não é saber que dia o caminhão do lixo comum passará e os dias em que o do lixo reciclado vai falhar. Não é difícil aprender quais os vizinhos vão implicar com a moto ou com o gato ou com o jeito que eu abro o portão da garagem. 
  O mais difícil, sempre, vai ser voltar para uma casa que não se voltou antes e não ser temporário. 

  O mais difícil de deixar ir embora não são as contas que vão chegar no final do mês e que eu vou ter que ligar para falar de dinheiro. Não serão as correspondências que vão chegar nos próximos cinco anos no seu nome e que, depois de um tempo, vou jogá-las fora sem abrir, porque não são minhas e não nos falamos há muito para eu entregá-las.
  O mais difícil sempre foi saber o que fazer com as mãos, depois que o caminhão for embora, com os espaços vazios na sala, na cozinha, no quarto, na bancada do banheiro e nas lembranças arejadas e amplas, cujas paredes estarão marcadas por um móvel que não está mais ali. O mais difícil de uma partida  é ver que duas vidas partilhadas, tão profundamente, cabem em um pequeno caminhão baú e que desorganizados, um por cima do outro, os móveis não são os mesmos que eram na casa. O difícil é depois de apagar a luz, ter que voltar a ser grande de novo com tão poucas coisas a serem guardadas.



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