terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Gostava de escrever os versos que ninguém lia

   Gostava de empurrar a bicicleta mais do que passear nela. Sincronizava os próprios passos com as rodas que iam ao lado, podia ver o brilho vermelho da tinta recém-aplicada na bicicleta comprada já usada. Encaixava uma das mãos no selim e com a outra, dava a direção no guidão, controlava o avançar e o retroceder das rodas. Com a vida não poderia fazer o mesmo, mas com a bicicleta podia   Não sobrecarregar o presente recente, lubrificar as correntes, economizar os usos, às vezes, colocar menos força e tentar poupar os pneus do contato com o chão. Ter a mesma bicicleta até a vida adulta, era um plano; mais companheira do que objeto. O menino e a bicicleta vermelha, o menino e o seu amor antigo, renovado por duas demãos de tinta rubra.
  A bicicleta encostada na calçada e uma aventura criança faz o menino tirar as mãos do guidão e correr atrás de um caminhão azul, subir na carroceria e cair na esquina sem nunca chegar à vida adulta. A bicicleta vermelha órfã das mãos do menino. Amor-amigo interrompido pelas mãos invisíveis que não encontraram o guidão na hora certa. 

  Gostava de encher uma bacia de plástico com água morna e espuma e, depois, ir experimentando a temperatura com os dedos dos pés, pelas bordas, devagar. Bailarina secreta, coreografia exata de um banho que só alcançava os pés.
  Um pé de cada vez, um dedo, depois de outro; para demorar mais e não derrubar nenhuma gota de água no piso. Para mergulhar os pés com delicadeza e não espalhar a brancura perfumada que cobria a água. Para que o ritual não acabasse logo depois que tivesse as solas, as unhas, os calcanhares e entre os dedos demasiado enrugados, depois de limpos. Para que mergulhar os pés durasse mais do que a errância que eles experimentavam todos os dias. Porque saber que o caminho tomado é equivocado, mas não ter como voltar a lado algum é um cansaço interminável.

  Gostava de ouvir os sons que vinham dos apartamentos vizinhos: do ronronar do gato que não era o dela, do silêncio eletrônico da televisão fora do ar, das risadas do programa de comédia americana, do jazz, do blues do R&B do baixista do 301. Das discussões ao telefone do síndico e uma contadora, do pop coreano da adolescente, um  diálogo de um filme da nouvelle vague ou uma cena da novela das nove.
  Gostava de saber dos pés inquietos na sala de jantar, batendo sobre o piso, sobre a cabeça dela,  dos chinelos arrastados há quase dois meses pelo homem, desde o dia que a namorada bateu a porta, depois de gritar que era o fim. Gal Gosta e Cátia França, trazidas pelo novo morador, o homem com barba que perguntou a ela, no elevador, sobre o dia em que a coleta de lixo reciclável passa no bairro. Não tinha gostado dele, mas seus sons têm sido inequívocos; dia desses, ouviu pipocas estourando na cozinha dele

  Gostava de falar os nomes devagar; dos substantivos, dos adjetivos, dos verbos e os conectivos todos. Gostava de pausar sobre as conjunções adversativas, para enfatizar o mistério: entretanto, porém, todavia, contudo.
  Gostava de ter um nome cuja última sílaba aberta podia estender-se no espaço; nunca acabar, só rolar até outro lugar que não conheceria. Ela não, mas o nome iria. Gostava de estranhar as palavras, de repeti-las até que se desgrudassem do objeto; um nome, antes da coisa que levava o nome.

  Gostava de conversar com uma pessoa nova por dia; qualquer assunto, a qualquer hora e no lugar que fosse: com a moça do caixa no supermercado, quando fosse comprar saco de lixo e pão; com o segurança do banco, quando a porta giratória travasse; com a professora do filho, sobre o figurino da peça de teatro; com o motorista do ônibus, quando precisasse descer em um bairro desconhecido.     Conhecer, por alguns minutos, alguém na fila, na escada rolante, no ponto de ônibus, na cadeira ao lado, dois anos antes, alguém que já morreu, alguém que foi embora e esqueceu-se de despedir. Duas ou três palavras e um olhar, quem sabe?

  Gostava de desenhar com os dedos sobre as mesas dos restaurantes ou balcão dos bares e lanchonetes, enquanto esperava a comida. As paisagens silvestres e os  animais em extinção, perfis de deusas indígenas, asas gigantes de anjos, vitórias régias e montanhas do Himalaia, sobre a mesa, sem nunca ter que apagar ou pedir desculpas para os seus donos.
  Gostava de escrever cartas, bilhetes, relatórios  e versos livres ou métricos que descansavam na memória ou nasciam dela, ali, na hora; traduzia-os, modificava-os, dedicava-os a alguém, imprimia-os na mesa e ninguém os lia. Mas da mesa nunca mais sairão.

   Gostava de poesia ao meio dia, enquanto todos enchiam seus pratos de arroz, feijão, salada e, alguns, bife. De lembrar-se de uma bicicleta vermelha todo dia vinte, do mês de fevereiro e da vida adulta que nunca aconteceu para alguém que era mais velho do que ela e a cada ano torna-se mais jovem; gostava da água morna encostando nos pés e restaurando a alma que caminha com, ainda, mais força.
  Gostava de ouvir as vozes que frequentavam outras vidas e que faziam a dela parecer menos solitária e silenciosa. Gostava de conhecer novos olhos e mergulhar profundo neles, mesmo que fosse um encontro de dois minutos. Gostava de falar os nomes e ignorar os objetos dos nomes; desenhar paisagens e rostos e nunca ter que apagar ou amassar uma folha e jogar fora. Gostava de escrever os versos que ninguém lia, mas que duravam tanto quanto uma mesa de madeira maciça ou uma bicicleta usada no coração de um menino infindo.



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