terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Um jardim de flores que não murcham

  Um jardim não é necessário, não é prático ou muito útil. É um painel generoso de boas-vindas numa  casa ou um adeus colorido para quem vai embora. Queria ter um jardim. Não é segredo para ninguém. Tive até muitos, ao longo da minha vida. Um meio agreste com hortênsias muito delicadas, rompendo a terra vermelha barrenta, se escorando nas paredes de taipa; um outro mais organizado com rosas brancas, amarelas e vermelhas e um outro, bem menor, que aconteceu entre os espaços de uma calçada de cimento, com liquens, musgos e suculentas de pequeno porte. Mas abandonei cada um deles; eu me perdia de um e encontrava o seguinte, sem muito intervalo para doer e lamentar as partidas.
  Fui embora deles porque nunca me pertenceram, de fato. Agora, busco um inteiro, real e possível. Que caiba no meu desejo, mas que não ocupe muito o tempo que não é meu ou os espaços que eu não tenho.

 Há anos que o meus olhos moram um pouco na varanda do outro lado da rua. Gosto da casa vizinha como se fosse minha, porque é, mesmo que eu não more ou não tenha nenhuma parte na sua herança. Mas é minha na sua imaterialidade, seus tempos, suas mudanças sutis e contumazes. Nas cores das suas paredes externas, nos ciclos das plantas, no latido do cão, na doença do homem e no seu violão baixinho, nas conversas da mulher antes das sete da manhã, nos filhos que foram embora, nos gritos e risinhos dos netos que vêm nos feriados.
  A casa é minha pela intimidade que eu estabeleci com os sentimentos que ultrapassam suas vigas e se sustentam nos anos. Na melancolia do envelhecimento dos seus donos, na solitude de um cão sem crianças para espantá-lo nos seus sonos que se prolongam pela tarde, nos afetos dos vizinhos que elogiam as novas cadeiras da varanda e oferecem laranjas dos seus quintais. Eu nunca entrei na casa, não preciso; moro sem nunca ter aberto, sequer, uma das suas portas.

   Laços de fita vermelhos e verdes nos pequenos coqueiros nos vasos da porta de entrada, no natal; coelhos de pelúcia na janela, na páscoa; bandeirinhas coloridas, em junho. A varanda é um calendário-cenário que  ilumina a rua e me torna mais íntima da casa que já é minha. A casa avisa e, ao mesmo tempo, parece ser comunicada sobre o clima que se espera dela em determinada data. Até o andar do cão e as músicas que o homem dedilha no seu violão parecem aderir a um acordo festivo. Eu também me sinto tocada pela decoração. Aos domingos pela manhã, gosto de estudar as perspectivas dos objetos que enfeitam o mês. 
   Mas anteontem, pela manhã, a mulher chegou na varanda de cabelos bem vermelhos; as cores dos seus fios também atravessam os meus dias. Um vermelho inédito, profundo, corajoso. Um vermelho intenso na cabeça castanha, loira - de várias gradações - ou negra da minha vizinha. A varanda muda, o cabelo da vizinha acompanha.

  Ela chegou com o cabelo rubro e vigoroso e começou a  decorar a varanda com flores artificiais mais coloridas que as da sua camiseta bordada. Acompanhei seus movimentos quase a manhã inteira, fazia intervalos pequenos para cuidar dos afazeres da casa onde moro com paredes, janelas e boletos, mas, mais ainda, para não sufocá-la com o meu interesse pela sua instalação vindoura. É uma artista; eu acho. É uma arte muito peculiar a dela; admiro.
  Na casa da frente, flores coloridas de tecido no final de fevereiro, fim de carnaval. O que significa um mar de flores de cetim brilhante, na janela da frente? Que data devemos saudar? Qual o ritmo as cordas do violão e o andar do cão vão marcar? Para  primavera, uma distância de sete meses. O que as flores na janela anunciam?

  Penso em muita coisa, olho profundo para as pétalas cortadas numa máquina industrial em algum outro país, compradas por poucas moedas numa loja do centro; me lembro dos meses, dos feriados, datas comemorativas e não chego a nenhuma suposição segura.
   E ela, ainda, se mexe ruiva, curvilínea e menos velha a cada flor depositada. Sorri e compõe a ordem de cada buquê, analisando as cores primárias, secundárias e terciárias, recorrendo ao círculo cromático fixado em sua memória de artista acostumada. Alguém passa, cumprimenta, elogia e ela modesta:
- Nada não. Só um jardim mais fácil para eu cuidar agora.
Fala risonha, numa esperteza infantil no corpo muito maduro e cabeça de fogo com labaredas altas.

  Meio muro que não protege a casa da visão que chega de fora, sem passaportes, sem documentos nas mãos; não dificulta, não atravanca, não burocratiza as visitas dos olhos alheios. Meio muro que não esconde as partidas, as ausências, os remédios, as caras amarradas, as risadas frouxas e repetidas por décadas entre um casal, as mudanças possíveis nos cabelos, nos rostos e decoração.
  Num deserto de sonhos muito demorados ou distantes, na urgência de gastar as horas e no desejo de demora para que os dias passem, numa terra absolutamente inóspita, de concreto no piso e  grades de ferro nas janelas, ela cria uma ilha de beleza. Artificial na sua materialidade, mas sublime de sentidos. O jardim que ela pode cuidar. Que ela planta sob os meus olhos e vai manter, como pode, até sua luminosidade conseguir simular sua flora colorida, particular e possível.

  Não ter inveja do jardim alheio, fazer o meu próprio, conhecer minhas possibilidades de florir, de alguma maneira, algum lugar. É minha oração de domingo.
   Queria me desfazer de um jardim; deste do outro lado da rua. Antes que seja muito tarde e ele se alastre, sem limites, pela minha memória. Mas acho que já aconteceu.
  Não ter inveja de um jardim que eu não plantei, mas cujas cores se fixam no meu domingo e me mostram que eu nasci, mesmo, para assistir aos jardins crescerem, me capturarem, fazerem das minhas entranhas seu adubo, até eu ir embora e o jardim ter que ficar. Um jardim que não lança perfumes ao vento, mas cujas flores não murcham nunca. A cabeça vermelha da mulher é quente e o seu jardim é o frescor do meu domingo, que ainda busca um lugar de flores que não precise do espaço de uma casa ou do tempo de certezas e netos.




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