sábado, 3 de março de 2018

Quanto tempo até a próxima página?

   O cão já está  há quase uma hora na porta da sala. Ele dá voltas em torno do próprio rabo, late para lua, mas já não arranha mais a porta, como fazia quando chegou. Um cão adulto é tão obediente, paciente, tem uma resignação tão imediata, que chego a ter pena. Se  deita e olha para a maçaneta da porta, eu finjo não perceber a sua espera, não quero compartilhar com ele da desilusão que é uma falta. Não interrompo o meu livro, vou terminar o capítulo, marcar a página para a volta e resolver o que o cão tenta, mas não pode. Talvez eu tranque a porta em mais lugares, coloque a tetra chave, encontre um o cadeado para a tranca do meio ou, talvez, dê mais voltas na chave. Quem sabe assim o cão compreenda que não há regresso possível hoje.
- Somos só nós dois.
  Decreto; sem nem erguer os olhos da página que custo muito a passar. Alguns segundos depois, olho para a porta e confiro se ele continua à espera. Está. Numa coisa o cão e eu nos aproximamos muito: insistência. Ele na porta e eu no sofá.
Por quanto tempo um cão pode ainda esperar, quando tudo ao seu redor sinaliza desistência?
Eu não farei o jantar.
Por quanto tempo um capítulo que nunca chega ao fim pode evitar a certeza de uma partida definitiva?

  Trinta páginas para o final do penúltimo capítulo e o cão não sai da porta, me incomoda a sua espera, porque reflete, um pouco, a minha, humanizada na mentira e a qual evito lendo o romance. Na narrativa do meu colo também há uma espera longa, que me angustia, me cerca de suspensão e incerteza. Ilhada, eu não tenho para onde ir esta noite. Fecho o livro e me levanto, abro a janela até os cantos, prendo a cortina, porque sei que o cão gosta do céu, talvez venha até ela e durma sob as estrelas, sua cama mais constante tem sido ali. Mas ele me olha profundamente e não se move.
  Vou até a cozinha para beber água, ele também deve ter sede. Fome ou sede podem interromper, por alguns minutos, a sua vigília ciosa. Abro a torneira da pia, deixo a água bater no alumínio, para que o som o traga até o seu pote com água. Troco por água fresca  e faço tudo em movimentos amplos e demorados, mas meu teatro não comove. O cão é tão irredutível quanto a porta, ambos permanecem fincados no piso da sala.
Por quanto tempo uma porta fechada pode alimentar uma espera resignada?

  Sou eu a dona da casa. Mas o cão não nota. Tenho ciúmes da sua constância, será que me esperaria também, seu fosse eu do outro lado da porta?
  A visão do céu não demoveu o cão da sua lealdade, o som não o afastou do seu exercício canino de atenção, talvez o olfato o convença. Farei o jantar. Um só prato.Vou estender a toalha na mesa, abrir um vinho e seguir a rotina de antes, sem nem olhar para a porta. Cozinho com a janela da cozinha fechada para o cheiro se espalhar pela casa. Em poucos minutos o cão deve estar salivando e virá dar  mordiscadas no meu calcanhar, pedindo comida, obediente de fome. Os grãos demoram a cozinhar e o cão ainda espera; a rolha da garrafa se esfarela e o cão tem os olhos fixos numa impossível chegada; a cenoura cozinha demais e o cão não vem até a cozinha.
  Por quanto tempo uma mesa posta pode esperar?

  Não tenho fome. O vinho não saiu da garrafa. Eu e o cão perdemos os nossos apetites urgentes e eu, sozinha, a aposta de demovê-lo da porta. Quanto tempo uma palavra dura? Se alguém diz que não volta, só porque o cão não compreende, ela virá ao seu encontro, ao menos? Se eu ignorasse a promessa? Se como o cão, não entendesse as palavras, apagaria todos os abandonos e eu seria resignada em frente à porta infinitamente?
  Por quantos dias ou horas uma notícia pode ser publicada sem prejudicar a fonte ou passar do tempo e ser velha? Quanto tempo demora para um acontecimento ir para os livros de história ou quanto devemos esperar para que ninguém mais se lembre dele?

  Volto ao livro e o casal do romance já está velho. Queria que o cão lesse, queria dividir com ele um único trecho: "Começaram a se ver com menos frequência à medida que ela alargava seus domínios, e à medida que ele explorava os seus tratados de encontrar alívio para seus velhos padecimentos em outros corações desarvorados, e por fim se esqueceram sem dor". Viu, quando vão embora? É assim, pelo desejo de ambos. Mas o que o cão entende de amor? Todo ele é só amor e perdão do dia em que nasce até morrer. Os cães não têm a mesquinharia de um amor romântico, são ilimitados demais para isto.
  Quanto tempo um amor velho resiste às carícias mornas e acostumadas? Por quanto tempo um amor novo pode esperar pela desocultamento do misterioso e alcançar a intimidade, que é o conforto de amar?

  As páginas começam a fluir, mas ainda vejo o cão, por cima do livro. Queria que ele latisse, que brincasse com os sapatos, as almofadas, o tapete e as cortinas. Queria que ele fosse menos sisudo, menos circunspecto e grave, mas o cão é adulto e dramatiza as partidas sérias. Não sei como lhe explicar, talvez, também, porque eu ainda não saiba compreender uma despedida.
  Esta noite, rejeitamos o céu, os líquidos, os pratos. Eu menti a minha angústia de espera e ele a trouxe para a minha sala. Eu fiquei desistente no sofá e ele resistiu no tapete da entrada. Nesta noite, fomos o que nascemos para ser: o cão leal e a mulher ferida. Chego à metade do último capítulo, marco a página e me viro para olhar mais uma vez para a espera cativa o cão.

  A maçaneta se mexe, suspiro e o cão se aproxima. Meus dedos seguram com força os seus pelos, queria que me sustentassem agora.
  O cão é o sabedor maior das relações desta casa. Ele se comunica com os interiores dos outros moradores, conhece as palavras, nossos modos e amores; o cão sabe quando uma espera é longa, mas não é definitiva; talvez conheça, inclusive, o romance que eu quis dividir com ele há alguns minutos. A porta se abre, o cão me olha, mas me abandona na sala. Vai comer, vai beber, vai olhar para a lua e dormir, olhando as estrelas.
  A espera do cão não era dele, era a minha que ele vigiava. Ninguém ama mais do que um cão, ninguém entende melhor um abandono do que ele. A porta aberta, uma chegada. O cão fiel, uma debandada. O livro em cima do sofá, quanto tempo até a próxima página?



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