quarta-feira, 7 de março de 2018

À borda do improvável

   Seis e quarenta da manhã, dia seis de março, um metro e vinte de altura que ainda acontece, uma sunga verde, óculos prateados e touca metálica. Há três semanas eu o vi pela primeira vez, quando soube da idade e altura, não sabia que era a primeira, só hoje, três semanas depois, tentando me lembrar do início, eu soube que o primeiro dia foi aquele. É estranhamente assim, os primeiros encontros, às vezes, só são sabidos depois.
  Há três semanas que ele só chega até à borda, no início saía seco, quase sem a experiência daquilo a que veio. A borda era mais longe e ele não tirava a camiseta. Não tinha medo nos olhos, mas não tinha também uma coragem, era um menino e só.

   Agora, a borda é bem pertinho, é acostumada, visão tranquila de alguém que molha os pés, o joelho e mais nada. É bom vê-lo se aproximando lentamente, é uma imagem calma, de um aprendizado sem pressa, de passos pequenos, mas firmes, sem ser jogado à água de qualquer jeito.
  A sunga permanece seca e nova, os óculos estão sempre no lugar e a touca bem justa na cabeça, mas a água ainda não passou por ele.
  Para quê a pressa? Nadar é deliciosamente uma extensão que não devia acabar, só quando o fôlego não viesse mais.

  Entrar na água, exceto pela urgência de alguma necessidade, como a de um barco prestes a naufragar ou o resgate de alguém que sucumbiu às ondas, cãibras ou profundezas, devia ser esse mesmo ritual infantil de ser próximo, antes de mergulhar. Porque depois de estar dentro, as sensações da borda não poderão ser experimentadas da mesma maneira de quando ainda não se conhecia as águas.
  Assistir aos raios da manhã atravessarem os vidros e desenharem cintilância e cor na água da piscina, às pequenas ondulações que um corpo é capaz de produzir, mesmo que este corpo seja calmo, sentir o cheiro do cloro, ver o piso do fundo da piscina distorcido e se liquefazer, diluir-se como o sal no mar, assentar ao fundo em silêncio, antes de avançar contra a água.

  Não sei se os pais de hoje são melhores ou só mais bem informados ou nem uma coisa nem outra. Mas o pai, que é quem o traz, não parece ter urgência. O professor é mais ansioso, talvez pela precisão da sua função, então oferece os braços de dentro da água, boias de todas as cores, paródias musicais e palavras de apoio a um enfrentamento - do menino e a piscina inexplorada.
  Os pais da minha infância tratavam os nossos medos de outro jeito, numa mistura de firmeza e temor pelo futuro covarde de um filho. Eles sabiam da dureza que a vida requisita e tentavam, como podiam, nos persuadirem da necessidade de enfrentarmos o medo com velocidade e de maneira feroz.

- Tem medo de cachorro? Vem cá e passa a mão nele agora. Vem, passa!
E não eram as mãos que encontravam o cachorro, era o medo, a pressa de acabar logo com a experiência. E na ansiedade de matar um medo, descia, rio abaixo, o prazer junto.  
- O quê, galinha? Mas galinha não faz nada. Ela tem mais medo de você do que você dela. E ninguém tinha tempo de analisar uma galinha, saber das penas de um galinha, do seu bico, pés e costumes, antes de ter que colocar a mão numa delas.
- Vai ver o seu avô ser velado sim. Morte faz parte da vida. Não pode ter medo, um morto não faz nada.
- Apaga a luz e o sono vem. O escuro é a mesma coisa que o claro, só que com a luz apagada.

  O menino de hoje de manhã não. Ele não é obrigado a descer até à piscina enquanto não quiser. Não matam sua descoberta, que é no tempo de nascer um amor. O menino está na borda ainda; vê a água, ajeita os óculos de mergulho, a touca metálica, ainda mais brilhante sob o sol, e não entra. Vê as pernas e os pés que passam por ele, enquanto ele está sentado e se encanta pelos braços que saem da água e mergulham novamente.
  É bom ter tempo de ter medo, estranhar, assustar, aprender o que é uma coisa antes de ter que estar submersa nela; é bom encantar-se perdidamente e, depois, enamorar-se profundamente de uma coisa e, só então, ter coragem de num impulso descer e ficar dentro dela sem a aflição de que termine logo. Nadar, conhecer e amar exigem um tempo infinito; morrem os três se forem superados às pressas.

  Ele irá aprender a nadar, não sei se nessa semana, na próxima ou daqui a dois anos. Mas, um dia, vai entrar na água e descobrir a potência dos próprios braços e a felicidade que é ser mais leve que a água. Vai desenhar um caminho de plenitude e meditação na prática ou só vai entrar, aprender os movimentos básicos e nunca mais voltar. Mas acontece que, inevitavelmente, ele irá além da borda.  Todos saímos dela um dia.
  Oito da manhã, seis de março, um  metro e oitenta que já aconteceu, um maiô preto, óculos vermelhos e touca cinza, saio da piscina enrugada pelo tempo na água e nostálgica pela borda que um dia eu frequentei com medo. Estamos sempre em alguma borda. Estaremos sempre à beira de um medo que precisa ser enfrentado.
- Uma hora vai, não precisa ter pressa.
Diria meu pai contemporâneo se me levasse à natação.
  Estou à beira do improvável, assisto suas pequenas ondulações e me encanto com elas, daqui a pouco mergulho, talvez eu ame, talvez não volte nunca mais, mas o medo ficará no fundo da piscina, junto com as moedas, elásticos de cabelo e etiquetas descoladas.


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