domingo, 1 de abril de 2018

A liberdade de calça jeans

  De camiseta branca de malha bem larga, com a gola esgarçada e mangas tortas, numa calça jeans clara e desbotada, barras desfiadas, sem bainha, folgada na cintura, caída pelo quadril, sem cinto e uma sandália de borracha preta, tocando com altivez o guidão de uma bicicleta, a liberdade passa a centímetros de distância das minhas ondulações perturbadas dos últimos tempos.
  Do mesmo lado da rua, eu na calçada e a liberdade no asfalto; ela passa tão próxima que poderíamos nos tocar, caso uma de nós quisesse. Mas a liberdade é solta, é desapegada e não se atreveria a me invadir e eu, só a vi depois que ela tomou a minha frente, mas também não a impediria de seguir a sua rota imprecisa.

O rapaz é magro, parece pequeno, mesmo quando se levanta do banco da sua bicicleta e segue a via entre os carros, como se nada pudesse atingi-lo; não olha para os lados, mantém a cabeça erguida e aspira todo o ar disponível no planeta. Ele passa tão perto dos transeuntes, postes, carros, que às vezes sua camiseta branca parece encostar nas outras coisas do mundo, mas com uma sutileza arrebatadora, ele continua a sua trajetória errante, de quem passa, atravessa, deixa alguma marca, mas não para.
- Esse aí não tem nada a perder.
  O homem que passeia com dois chihuahuas irritados, parece desabafar mais irritado que os chihuahuas.
  Não sei, a mim, me parece que a liberdade tem muito a perder, por isso essa velocidade, esse desprendimento sobre duas rodas no domingo de manhã. A liberdade tem tudo, não vê, homem dos chihuahuas? Tem mais que eu e você.
  
  A liberdade passou ao meu lado na rua, hoje pela manhã, roubou os meus olhos que a seguiram por algumas quadras, os quais me devolveu antes de virar a última esquina. A liberdade só pede licença e empréstimos de alguns segundos, não mata, não fere, não destrói, não rouba  nem sequestra, mas toca profundamente, ainda que não doa.
 A liberdade tinha calça jeans e camiseta branca, sorria e respirava com uma ventura admirável que só irritava o dono dos chihuahuas e alguns motoristas habituados a chegarem na frente sozinhos. A liberdade não me olhou nos olhos, não parou para me perguntar as horas, tampouco pediu que eu tirasse os meus fone e a ouvisse, ela só passou do meu lado e me levou com ela por alguns instantes preciosos. 

  "Nada a perder" a voz do homem dos chihuahuas, me perseguiu por alguns passos. "Quem não aposta não perde nada, mas não se surpreende" é uma voz passada de alguém que nestes dias de festas tem feito muita falta, que não volta, mas a quem só pude compreender distante. Ele também era uma liberdade muito atrevida.
  A liberdade, em cima de uma bicicleta, me apresentou a inédita amplidão de uma avenida pela qual passo todos os dias. Não estive por cima de uma onda, não atravessei nenhuma fronteira, não encontrei cadeado, senha secreta nem uma cura para todo o mal, mas alcancei todo ar que eu gostaria e ainda afastei o boné para tomar um pouco de sol no rosto. A liberdade de camiseta folgada me inspirou a isto.

  Uma brisa, um golpe de vento tranquilo e fresco, balançando meus cabelos presos no elástico de todos os dias, o homem irritado com os cães igualmente irritados, ficando para trás e a liberdade correndo solta muito a minha frente. Eu não posso alcançá-la, mas começo uma corrida tranquila de alguém que também não tem nenhum lugar para ir, mas não fica parada nunca.
  A liberdade ignora a minha existência, a minha admiração completa e segue o seu caminho desencontrado do meu. Não tenho tanto fôlego para segui-la por mais quadras, em algum momento teremos que nos separar e eu não lamento; abandono-a a sua a própria vocação de ser fluida.

   Eu não precisei estar na garupa da liberdade nem continuar o meu caminho atrás das suas rodas, a liberdade já estava aqui quando a bicicleta me levou. Na volta, encontro o homem com os cães e grito um bom dia, enquanto passo lívida, solta e liberta das minhas prisões cotidianas.
  Fica mais fácil achar a fechadura da cela, quando descubro que sair é bom.
  A voz de antigamente, na verdade, nunca se calou: apostar tudo. As pessoas se ausentam, mas as suas vozes nos acompanham.

  A liberdade passou ao meu lado, hoje pela manhã, tirando fino, arriscando toda a sua grandeza numa avenida irritada. A liberdade de calça jeans era descomplicada, discreta, sem alarde, quase invisível, se não fosse tão invejada.
  A liberdade de calça jeans e camiseta de malha, ultrapassando os carros, ziguezagueando as curvas  e se instalando no meu domingo inteiro; calma, plena e predileta.
  A liberdade de calça jeans, roubou as minhas angústias, espalhou-as pelo asfalto quente e me ensinou a respirar sem modéstia, de braços abertos, coração tranquilo e oferta de sorrisos e bons dias bons a quem tivesse ouvidos. A liberdade atravessou cada uma das minhas ondas e seguiu mar adiante; de longe ainda me inspira, a liberdade jogadora. Mas não há volta, a liberdade é filha do verbo seguir.





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